30/09/2029

Por Donizete Rodrigues

Universidade Nova de Lisboa – Centro em Rede de Investigação em Antropologia; Universidade do Estado do Pará – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião)

Segundo a Antropologia interpretativa de Geertz (1973), a etnografia não é meramente uma metodologia de pesquisa ou simplesmente uma técnica de coleta de dados. Na verdade, a etnografia apresenta um enfoque mais abrangente, centrando-se na compreensão de sociedades e grupos, a partir de uma descrição densa de suas práticas socioculturais e religiosas. Cabe assim ao etnógrafo, segundo o autor, explicar como essas práticas, experiências e dinâmicas sociais constituem teias de significados.

O trabalho de campo etnográfico, na linha tradicional de Malinowski e, posteriormente, de Geertz, implicava (obrigava) a presença física do antropólogo no terreno. Hoje, com as novas tecnologias digitais, podemos complementar a busca de informações (dos dados etnográficos) – e acompanhamento do quotidiano do grupo, da comunidade em estudo – utilizando a internet, as diversas redes sociais, nomeadamente o Facebook e o Whatsapp

Nos anos de 1990, para atender a necessidade de adaptação do método de pesquisa etnográfico clássico (no/do terreno geográfico) para o estudo do mundo virtual (nos/dos meios digitais) e suas implicações, surgiram vários conceitos e abordagens: netnografia, etnografia virtual, etnografia digital, etnografia on-line, webnografia e ciberantropologia.

Neste contexto, um termo em destaque é o de Netnografia, sendo Robert Kozinets (2015) o seu maior expoente. Este autor considera a netnografia (‘etnografia na internet’ ou ‘etnografia online’) como um tipo específico de pesquisa qualitativa de mídias/redes sociais, que adaptam os procedimentos metodológicos, utilizados na observação participante, ao estudo de subculturas, grupos e comunidades virtuais criadas por meio das interações sociais mediadas por computador. Essas interações e experiências, que se manifestam por meio de comunicações digitais, constituem a fonte de dados e informações primordiais para a compreensão etnográfica de um determinado fenómeno social, cultural (e religioso).

É pertinente realçar que os primeiros estudos sobre as interações sociais na internet eram de cariz etnográfico. Christine Hine, através da sua obra Virtual Etnography (2000), foi uma das pioneiras. Segundo a autora, o ciberespaço pode ser estudado como cultura, no sentido dado pela Antropologia; nessa perspetiva, a internet é também um lugar onde a cultura e (re)constituída. Assim, cabe ao etnógrafo, como um insider inserido no ambiente de pesquisa, em contato direto com os sujeitos participantes, estudar os fenómenos e as práticas culturais que acontecem nas comunidades virtuais.

No que se refere especificamente à aplicação da etnografia online nos estudos da religião, após o grande desenvolvimento e massificação do uso da internet numa escala mundial, as igrejas e as religiões históricas e os milhares de novos movimentos religiosos (NMRs) passaram a utilizar este importante meio de comunicação de massas para realizar e partilhar os seus eventos religiosos e divulgar as suas mensagens religiosas como forma de proselitismo. Há mesmo igrejas e NMRs que só existem na internet, sem ocupar um espaço físico, real – são as denominadas ‘igrejas virtuais’ e ‘religiões online’. No ciberespaço as pessoas podem, de forma desterritorializada e atemporal: ler sobre religião; entrevistar líderes religiosos e seguidores; falar com outras pessoas sobre religião e sobre as suas experiências místicas-religiosas (chat – grupo de conversação); baixar livros sagrados (a Bíblia, por exemplo) e documentos religiosos; ver imagens e vídeos; ouvir músicas religiosas, sermões, pregações, testemunhos; praticar meditação; participar em peregrinação virtual e em rituais religiosos; assistir cerimónias religiosas, missas e cultos, etc. (Hadden, J. K. & Cowan, 2000; Dawson & Cowan, 2004; Hojsgaard & Warburg, 2005; Rodrigues, 2007).

No ano de 2019, um acontecimento biológico veio alterar radicalmente a vida social e religiosa de todas as sociedades do mundo. A grave pandemia provocada pelo coronavírus-19 transformou profundamente a vida quotidiana das pessoas, provocando significativas mudanças de comportamento, incluindo as práticas religiosas. O/um vírus alterou completamente a vida das pessoas, isolando-as em casa, nos bairros, nas cidades. Como consequência, nós académicos, ficamos (fisicamente) separados do nosso espaço primordial de trabalho – a universidade (onde ensinamos) e do terreno etnográfico (onde fazemos investigação).

Neste contexto de impossibilidade de contato real, físico, qual seria a alternativa para a pesquisa etnográfica? A alternativa foi utilizar as redes sociais, para continuar a acompanhar o quotidiano dos fiéis, grupos e comunidades religiosas.

No que se refere especificamente às práticas religiosas, a partir do surgimento da pandemia, os grupos religiosos apropriaram-se ainda mais dos espaços digitais para continuar a atender os seus fiéis e para levar a mensagem religiosa a um público agora ainda mais vasto.

Para concluir essa reflexão, é importante lembrar que a Antropologia, ao longo da sua história, tem conseguido adaptar-se, epistemo-metodologicamente, às mudanças históricas e culturais. O impacto social do Covid-19, este invisível e mortal inimigo para a humanidade, trouxe um novo desafio metodológico, mas também novas possibilidades de investigação etnográfica. Num contexto de um mundo cada vez mais digital, a etnografia teve que se adaptar, de forma eficaz, flexível e criativa, a esta nova realidade social e religiosa. E a bibliografia especializada prova que esta necessária viragem metodológica está a ser muito bem-sucedida.

Bibliografia

Dawson, Lorne & Cowan, Douglas E. (eds.) (2004). Religion Online. New York: Routledge.

Geertz, Clifford (1973). The Interpretation of Cultures. New York: Basic Books.

Hadden, Jeffrey K. & Cowan, Douglas E. (eds.) (2000). Religion on the Internet: research prospects and promises. New York: JAI Press.

Hine, Christine (2000). Virtual Ethnography. Londres: Sage.

Hojsgaard, Morten & Warburg, Margit (2005). Religion and Cyberspace. London: Routledge.

Kozinets, Robert (2015). Netnography: redefined. London: Sage

Rodrigues, Donizete (2007). Sociologia da Religião: uma introdução. Porto: Edições Afrontamento.

 

Marco Túlio de Sousa
Marco Túlio de Sousa
Doutor em Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), mestre em Comunicação pela UFMG e graduado em Comunicação (Jornalismo) pela UFJF. Criador do grupo "Mídia, Religião e Poder" no facebook e do blog "Mídia, Religião e Sociedade". Desenvolve pesquisas sobre experiência religiosa e mídia.

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