27/06/2016
Por Marco Túlio de Sousa
Doutorando em Comunicação (Unisinos)
|
Professor Dr. Antônio Fausto Neto na Unisinos |
Na primeira parte da entrevista o professor Dr. Antônio Fausto Neto falou da sua pesquisa sobre as produções televisivas da igreja católica e de igrejas evangélicas pentecostais. De acordo com ele, apesar das doutrinas das igrejas diferirem, a inserção na mídia fazia com que se adaptassem a lógicas próprias do campo midiático, tornando suas performances similares. Além desta análise sobre a presença da religião na TV, integra o projeto “Processos Midiáticos e Construção de Novas Religiosidades: as dimensões discursivas” uma investigação a respeito da midiatização do Círio de Nazaré. É com este tema que continuamos a entrevista.
MRS: Eu queria que o senhor falasse do segundo ponto do projeto de pesquisa, que envolve o Círio de Nazaré.
Fausto: Foram dois momentos de observação sobre duas procissões: uma há mais de 10 anos [2001] e outra em um momento mais recente [2013]. No primeiro estudo eu procurava mostrar como os campos sociais se tensionavam e, particularmente, como o campo religioso era tensionado pela presença de outros campos na organização e no funcionamento de certos rituais. Ou seja, como os campos da política, da economia, da segurança etc faziam convergir para o campo religioso um conjunto de cooperações a fim de que aquele acontecimento, não obstante a sua dominância religiosa, tivesse marcas de outros campos sociais que, por seu turno, faturavam essa colaboração do ponto de vista eleitoral e de propaganda/ publicidade de mídia etc. Ali se apresentava o início dessas articulações complexas de campos. Era um evento/ ritual católico, mas que, por ser um acontecimento que atravessava os veios da organização social em termos de devoção, de crença e de reputabilidade pública, para sua realização se oferecia o concurso de muitas práticas de campos sociais como uma forma destes campos também investirem a sua reputação simbólica na medida em que também participavam da sua realização. Ou seja, a romaria tinha um veio dominante católico/ religioso, mas não existiria se não fossem estes outros interesses que perpassavam a sua organização. Já no outro estudo, mais de 10 anos depois, eu mostrei uma mudança, uma complexificação dessas relações entre campos, mas, sobretudo, a importância desse acontecimento de rua que tomava uma feição, não só pela robustez da fé e da devoção dos fiéis, mas pela presença de redes sociais. O acontecimento era em uma ponta dinamizado pela internet e pelas redes sociais e levado adiante por esse movimento de um coletivo amplo, e não mais só pelos romeiros. Era dinamizado pelo twitter, pelo facebook. Na outra ponta repousava sobre sistemas midiáticos tradicionais e modernos o processo de anunciabilidade. Ou seja, ao longo da procissão instalavam-se na Av. Nazaré, em Belém, vários estúdios improvisados em apartamentos onde se alocavam várias celebridades como padre Fábio de Melo, padre Marcelo, Fafá de Belém etc. Todas estas celebridades coordenando um estúdio de rádio ou televisão transmitindo o evento, mas da perspectiva da lógica dos seus interesses e das mídias também. Isso ocorre a tal ponto que em certo momento a procissão passa em frente ao local onde está o padre Fábio de Melo e ele não só dá a bênção, que seria a benção aos fieis que tradicionalmente é dada pelo bispo local que esperava a procissão no final do cortejo, mas também faz uma selfie, como a dizer: “eu estive aqui e nessa função específica”, foto essa que naquele momento foi espalhada para urbi et orbi (para o mundo) mostrando sua performance. Fafá de Belém leva uma orquestra para tocar. Então, têm-se várias iniciativas que tratam de convergir com a natureza da festa, que também fazem derivar dela alguns produtos de ordem midiática, mas na perspectiva de uma economia de negócio, uma economia simbólica que não tem como central a procissão e o ator religioso nas suas fronteiras.
MRS: isso diz muito da entrada de uma lógica do espetáculo atravessando o ritual religioso. Ou seja, o ritual religioso permanece como ponto de articulação, mas permeado agora por outras lógicas…
Fausto: sem dúvida! Apesar de toda a sua riqueza, a lógica do espetáculo religioso é inibida pela presença de outras formas ritualísticas de espetáculo que comparecem não só nos seus representantes, mas também por seus dispositivos técnicos que dão a aquele acontecimento uma leiturabilidade totalmente distinta da que seria característica do evento, ou seja, da devoção da missa etc. Cada um tira partido, digamos assim. Isso tem se complexificado a tal ponto que as pessoas que moram naquela região alugam por uma semana as fachadas dos seus apartamentos a preços bem apreciados para serem transformados em estúdios de rádio e televisão, e, sobretudo, de celebridades.
MRS: Bom, o senhor acabou tocando neste ponto de forma indireta em alguns momentos da entrevista, mas, para sistematizar, eu gostaria que falasse sobre o que caracterizaria o relacionamento do campo religioso com o campo midiático na “sociedade dos meios” e na “sociedade em midiatização” (FAUSTO NETO, 2008), dois conceitos muito fortes na sua trajetória de pesquisa.
Fausto: Bom, grosso modo, é o seguinte: na “sociedade dos meios” os meios de comunicação, pela sua organização de seus modos de produção, da sua sintaxe, tematizavam e exerciam certo controle do acontecimento religioso, ou seja, o acontecimento religioso era subordinado a certas leis internas da programação de uma rádio ou de uma televisão. Exemplificando: houve um momento no passado em que a televisão transmitiu o Círio durante 8 horas porque havia uma simbiose do seu interesse e do interesse do campo religioso no sentido de reconhecer que aquele acontecimento era central na vida daquela população. Mas, a partir do momento em que interesses outros de programação nacional, regional atravessam a vida de uma rádio, de um canal de TV, a noção de tempo da procissão de oito, seis, cinco horas vira uma hora, meia hora restringindo-se à cobertura de aspectos centrais como a benção do bispo ou à entrada do cortejo na igreja etc. Esse momento caracteriza a centralidade do papel dos meios na organização de grandes eventos públicos. Evidentemente que esses grandes eventos públicos são atravessados por grandes cerimoniais de fundo, conforme bem disse o Daniel Dayan (1992, 1999) quando ele estuda acontecimentos que são televisionados, que, segundo ele, se baseiam em rituais profundos em termos de representação simbólica por parte da história da sociedade humana. Na medida em que a sociedade exacerba o funcionamento de tecnologias convertidas em meios e isso atravessa todas as práticas sociais, inclusive a religiosa, o campo institucional midiático não desaparece, mas deixa de ter uma centralidade porque o acontecimento está na mão de todo mundo, tanto das fontes produtoras religiosas, que passam a ter todos os dispositivos para produzí-lo, quanto dos atores sociais que têm internet, que têm celular, whatsapp, facebook, twitter. Então, sai-se de uma centralidade de transmissão midiática para uma pluriversidade de transmissões que se fazem de acordo com regimes, motivações e interesses de cada cidadão. Há, claro, um acontecimento “jurídico”, sociológico que se faz naquela semana e, especificamente, naquela procissão, mas o modo de “desenhar” sua existência sai da mão de peritos, de mediadores que tinham a responsabilidade central no modo de narrá-lo, de anunciá-lo, de comentá-lo e passa para as mãos de todos que podem com o acesso às tecnologias, construir as suas enunciações…
MRS: Podemos dizer que se sai de uma lógica transmissiva para se entrar em uma lógica de compartilhamento?
Fausto: de compartilhamento nesse sentido de que todos os agentes tem acesso a dispositivos midiáticos que antes estavam nas mãos apenas dos peritos da mídia. É isso que caracterizaria o acontecimento nessa sociedade em midiatização. Contudo, não se quer dizer que não haja rusgas muito importantes que apontam para tensionamentos, recuos, resistências a esses fenômenos. Existem tensões nesses acontecimentos, modos de redesenhar o ritual religioso strictu sensu no sentido de fazê-lo circular à deriva dessas intervenções midiáticas mais contemporâneas. Mas para identificá-los seriam necessários muitos processos observacionais para capturar os “n” Círios que se realizam concomitantemente àquela grande procissão, inclusive no interior dela. Há muitas manifestações que apontam para outros processos de produção de sentido enquanto marcas de fraturas. Recordo-me no Círio de 2013 duas manifestações: 1) a tradicional de rua, já incorporada às redes sociais, e (2) a ela se agregavam dispositivos de captação da procissão que já não se restringiam mais apenas naquele sistema de rádios, tvs etc e que se notabilizavam pela presença das celebridades que faziam surgir um co-acontecimento. Havia um acontecimento que seguia um ritual oficial e microacontecimentos que se desencadeavam a medida que a procissão passava por esses ambientes, onde ocorriam esses enlaces momentâneos. Ou seja, nichos de produção periféricos capturavam-na segundo suas lógicas específicas. Isso reflete um nível de intervenção de um dispositivo em produção paralelo ou consentâneo se apropriando da procissão em si. Exemplificando: a procissão se faz por um percurso que vai do cais até a catedral. Por aí passam 2 milhões de fiéis. Ao longo desse trajeto instalam-se gabinetes em apartamentos e portarias ocupados pelas celebridades. E as pessoas param ali, reverenciam esses personagens, toca-se música, dá-se uma bênção. Isso gera a irritação do bispo que esperava a procissão chegar enquanto o padre Fábio de Melo, como eu já mencionei, dava outra bênção e tirava uma selfie. Essas intervenções são espécies de “fraturas em produção” porque são feitas por personalidades/ operadores que fazem o ritual circular em outro destino interpretativo, mas que estão incorporados de alguma forma à produção oficial do acontecimento. Por isso digo que é uma “fratura em produção”. Observei também outra fratura distinta da anterior. No centro da procissão há uma corda (o cisal) que 30 mil promisseiros seguram e protegem durante o trajeto e que seria dividida entre eles na igreja, segundo acordo feito previamente com as instâncias oficiais. Desta vez eles se antecipam, cortam a corda e se apropriam de seus pedaços transformando-os em relíquias. Isso do ponto de vista da antropologia simbólica é uma espécie de ruptura com o ritual sobre o qual funciona esta manifestação do ponto de vista da sua lógica de produção e ao mesmo tempo um “redesenho” do seu processo de significação. É preciso que haja uma ruptura para que ele seja ressimbolizado. Os indivíduos redesenham esta organização dando a ela outra significação segundo um ato que passa por eles mesmos, por uma ação técnico-simbólica dos atores sociais.
MRS: um ato que acontecia à revelia das prescrições institucionais…
Fausto: sim! A previsão era de que este corte aconteceria apenas no final quando a procissão chegasse até o bispo, e a corda, então, consagrada pelo seu ritual de origem, fosse dividida entre os fiéis. Esta antecipação por parte dos promisseiros foi muito mal vista, muito mal compreendida. Ela foi lida como um desrespeito, como uma afronta porque a lógica procissão foi traçada por um postulado de racionalidade definido pelos campos sociais que ofertavam que este acontecimento. Então, nesta atitude os atores sociais rompem com o ritual e dão outra significação. Isso está detalhado no texto “Círio de Nazaré: celebrações, divergências e rupturas” (FAUSTO NETO, 2013).
* Para ler a primeira parte da entrevista clique <<<aqui>>>.
Textos Citados nas partes 1 e 2 da entrevista
ASSMANN, Hugo. A Igreja Eletrônica e seu impacto na América Latina. Petrópolis (RJ): Vozes, 1986.
ECO, Umberto. Viagem na Irrealidade Cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
DAYAN, Daniel & KATZ, Elihu. A história em directo. Os acontecimentos mediáticos na televisão. Coimbra: Minerva, 1999.
DAYAN, Daniel e KATZ, Elihu. Media events: the live broadcasting of history. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1992.
FAUSTO NETO, Antônio. Religião do contato: estratégias dos novos “templos midiáticos”. In: Emquestão –Revista da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS. Porto Alegre, RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vol. 2, n 1(jan./jun 2003), p. 163-182.
_____, Antônio. Fragmentos de uma analítica da midiatização. In: Revista Matrizes, nº 2, Abril, 2008 –pp 89-105
_____, Antonio. Círio de Nazaré: celebrações, divergências e rupturas. In: Netília Silva dos Anjos Seixas; Alda Cristina Costa; Luciana Miranda Costa. (Org.). Comunicação: visualidades e diversidades na Amazônia. 1ed.Belém: FADESP, 2013, v. 1, p. 27-50.
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 18º ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
HARTMANN, Attilio Ignacio. Religiosidade e mídia eletrônica: a mediação sócio-cultural-religiosa e a produção de sentido na recepção de tv. São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – ECA-USP.
Sobre o autor
Antônio Fausto Neto é pós-doutor em Comunicação pela UFRJ, doutor em Comunicação pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS) da França, mestre em Comunicação pela Universidade Nacional de Brasília (UNB) e graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente é professor titular do programa de pós-graduação em Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Interessa-se por temas relacionados a Jornalismo, Discurso, Noticiabilidade, Estratégias Midiáticas e Midiatização, tendo também já estudado objetos que envolvem religião, discurso e mídia, especialmente no âmbito televisivo.
Conheça textos do professor já divulgados pelo Mídia, Religião e Sociedade clicando <<<aqui>>>.