Donizete Rodrigues e Saulo Baptista

Crivella e Freixo em debate realizado pela Band no 2º turno.

Até o Cristo Redentor, símbolo do catolicismo brasileiro, do alto do morro do Corcovado, na baía de Guanabara, pode estar boquiaberto: um bispo evangélico prefeito do Rio de Janeiro? Mas esta eleição não é tão surpreendente assim, se levarmos em conta a declaração do próprio Marcelo Crivella; ele afirmou que chegara até ali com a preciosa ajuda de Luiz Inácio Lula da Silva e do “seu” Partido dos Trabalhadores (PT). Vamos tentar entender como tudo aconteceu.

Do ponto de vista histórico e político, as relações entre a cúpula da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e o PT remetem às primeiras tentativas de Lula chegar à presidência da República, nas eleições de 1989, 1994 e 1998, em que ele saiu derrotado. Nesta época, a IURD fazia uma forte oposição ao PT – por considerar este partido “um reduto de comunistas”- e, em particular, ao Lula, retratado como “um símbolo do mal”. Ou seja, o PT personificava a besta do Apocalipse e Lula era o próprio diabo em pessoa. A Folha Universal, jornal oficial desta igreja neopentecostal, colocou, como matéria de capa, a figura de Lula – comparando-o a um sapo, símbolo do mal – e afirmava que o diabo tinha quatro dedos na mão esquerda – em alusão à falta de um dedo que Lula perdeu num acidente de trabalho, quando ele era torneiro mecânico.

Esta situação conflituosa perdurou até à quarta tentativa de eleição para presidente do Brasil. Lula reuniu-se, em Brasília, com Carlos Rodrigues, o líder do braço político da IURD, que já controlava uma importante bancada de deputados evangélicos, resultando numa negociação bem sucedida para ambos os lados: atendia aos objetivos imediatos do Partido (ganhar as eleições e Lula ser presidente) e, por outro lado, reforçava a ambiciosa trajetória da Igreja nos meandros do poder político, via eleição de parlamentares, nos níveis municipal, estadual e federal, até chegar à conquista do executivo – objetivo atingido na cidade do Rio de Janeiro, nas últimas eleições do dia 30 de outubro.

A partir daí, o PT passou a ser apoiado pela IURD e pela sua poderosa máquina mediática, cuja maior expressão é a Rede Record de Televisão, segundo canal mais visto no Brasil (depois da poderosa Rede Globo) e líder de audiência em horário nobre. Agora, nos media iurdianos, o PT já não era “um grupo de comunistas” nem Lula era “a personificação do diabo”. Assim, Lula conseguiu ser eleito, em 2002, e reeleito em 2006, em aliança com o Partido Liberal, tendo como vice presidente, o empresário e senador José Alencar (já falecido), um assíduo leitor da Bíblia e que achava que “a homossexualidade é uma forma de violência à natureza humana”.

Mas há o outro lado da moeda (de troca): o PT ajudou (e muito) na ascensão política de Marcelo Crivella, sobrinho do poderoso fundador e líder da IURD, Edir Macedo. Em 2002, Crivella foi eleito senador pelo Estado do Rio Janeiro e reeleito em 2010, com Lula na presidência do país.

Lula, com o forte apoio da IURD, conseguiu eleger Dilma Rousseff, em 2010, reeleita em 2014. E o PT agradece o apoio: em 2014, na inauguração do Templo de Salomão, em São Paulo, uma das maiores catedrais da IURD, participaram a “presidenta” Dilma e o seu vice, Michel Temer, atual presidente do país. A foto mais famosa do evento é a de Dilma ao lado de Edir Macedo.

Em agosto deste ano, com o processo de impeachment de Dilma, da Presidência da República, facto aliado aos escândalos de corrupção, envolvendo o próprio Lula, o PT entra em declínio em todo o país. No eleitorado carioca, o índice de rejeição ao PT foi de quase 50% dos eleitores, o triplo das outras siglas partidárias. O PMDB, partido do impopular Presidente Temer, apresentava também altos índices de rejeição.

Crivella, outrora senador da base aliada do governo petista, já havia tentado uma eleição para governador do Rio, em 2014; na ocasião, não obteve apoio das Assembleias de Deus, outra poderosa força política evangélica no Brasil, que preferiram apoiar outros candidatos. Nesta eleição para “prefeito” do Rio, porém, sem o PT e o PMDB, impopulares e enfraquecidos politicamente, o único candidato opositor no segundo turno era Marcelo Freixo, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), representando a esquerda. Marcelo Freixo ganhou o apoio da intelectualidade, dos artistas (Caetano Veloso, Chico Buarque e Wagner Moura e outros) e da classe média alta carioca, mas não conseguiu atrair os votos da população pobre, segmento social de base política da IURD; todos estes fatores históricos e políticos explicam a ascensão e vitória do bispo Marcelo Crivella à prefeitura do Rio de Janeiro.

Mas este é, apenas, um passo importantíssimo dentro de um projeto estratégico de poder da IURD, na sua marcha vitoriosa no contexto político brasileiro. E Marcelo Crivella não vai parar por aqui; ele já admitiu a possibilidade de se candidatar à Presidência do Brasil, com ou contra o seu antigo aliado Lula. Em 2018, os brasileiros poderão ter como líder máximo da nação um representante da Igreja Universal do Reino de Deus e aí o Cristo Redentor será coberto pelo manto sagrado do Espírito Santo.

Donizete Rodrigues
Professor do Departamento de Sociologia da Universidade da Beira Interior, Portugal. Doutor em Antropologia social pela Universidade de Coimbra. Associado em Antropologia, com Agregação em Sociologia.
Saulo Baptista
Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2007). Mestre em Ciências Sociais (Sociologia) pela Universidade Federal do Pará (2002), Graduado e Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (1999), graduado em Engenharia Civil (1975), pela mesma universidade. Professor adjunto efetivo da Universidade do Estado do Pará.
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