Signates: De fato, o pertencimento a esses dois programas de pesquisa e pós-graduação me traz uma oportunidade ímpar de enlaçar os campos dos estudos científicos da religião e da comunicação. A convergência está justamente no conceito de comunicação como “dialogicidade”. No campo da comunicação, diz isso respeito à própria definição do objeto; no da religiosidade, à possibilidade conflitiva de interação simbólica das religiões e dos religiosos entre si. Considero a religião como o espaço mais profícuo de estudo da comunicação, por se tratar de um meio cultural onde a comunicabilidade é testada em seus limites, seja porque as religiões contemporâneas, atormentadas pela midiatização da sociedade inteira, dependem forte e crescentemente de sua capacidade comunicativa para sobreviverem e se expandirem; seja porque, para se manterem como religiões, isto é, para preservarem as identidades de que as religiões são feitas, precisam assegurar a estabilidade possível de suas dogmáticas, e isso significa realizar a incomunicabilidade de suas estruturas dogmáticas fundamentais. Assim, a tensão entre comunicabilidade e incomunicabilidade alcança seu limite nos contextos religiosos, razão pela qual, a meu ver, é a religião, e não a mídia, o melhor dos espaços de pesquisa da comunicação.
Signates: Na medida em que se institucionalizam sistemicamente, no sentido habermasiano da palavra, na forma das igrejas, templos ou qualquer seja a denominação dos espaços institucionalizados de exercício e manutenção das dogmáticas e rituais, estabelecem-se como “instituições de poder simbólico”, no sentido de Thompson (2001).
Assim, as religiões, como as mídias, são instituições fortemente dependentes da capacidade de produção e reprodução simbólica do sentido para a vida, nas sociedades em que são instaladas. Isso não é novo; na Idade Média, a Igreja Católica cumpriu a mesma função e até hoje os murais e vitrais das catedrais constituem relatos pedagógicos daquilo que a religião quis inculcar nos fiéis, numa época em que o analfabetismo e a vedação do acesso aos textos sagrados era a regra geral.
Contudo, a noção de religião como mídia tem limites. Diferente das religiões, as mídias não produzem identidades culturais específicas, vinculadas às suas institucionalidades. A ideia de audiência apenas como metáfora poderia ser aplicada ao rebanho de fieis de qualquer movimento religioso. Assim, aquilo que se compartilha, que é o exercício do poder simbólico ou a produção e reprodução de formas específicas de poder garantidas pela capacidade de estabelecer vínculos de convencimento e crença, deve ser analiticamente limitado pelo reconhecimento de que religião e mídia operam tais sentidos de forma diferenciada.
Em todo caso, parece, contudo, que as semelhanças são suficientes para fazer as institucionalidades da mídia e da religião compartilharem várias práticas, como a midiatização da religião, que observamos no mundo todo, especialmente nas correntes evangélicas neo-pentecostais e no catolicismo carismático.
Signates: Justamente focando a pergunta-problema no aspecto comunicacional da religião e da religiosidade. Não se trata de abandonar as contribuições das demais áreas científicas – até porque isso não é possível – e sim fazer a indagação da comunicação, do que é especificamente comunicacional na prática religiosa pesquisada.
Nesse sentido, chamo a atenção para dois aspectos que me parecem particularmente importantes. Primeiro: o de que aquilo que funda um raciocínio científico qualquer é a pergunta que se faz. Se o comunicacional não estiver na dúvida ou no não-saber originalmente formulado para a pesquisa, certamente não é a comunicação o campo de que se trata a pesquisa – mesmo que haja formulações próximas, como mídia, televisão, jornalismo etc., na composição do arranjo teórico ou na conformação do corpus empírico da investigação.
O segundo aspecto é o caráter eminentemente empírico que precisa ter esse tipo de pesquisa. Em outras palavras, a emergência de um conceito de comunicação que não seja subalterno de conceituações outras, vinculadas a outros campos científicos, demanda um esforço de percepção do novo nas transformações simbólicas concretas das sociedades contemporâneas.
O que demanda por um “especificamente comunicacional” não é simplesmente um desejo político do campo por uma definição de sua identidade teórica própria, mas algo muito mais relevante do que isso: é a conformação das sociedades contemporâneas a partir de ritos de midiatização.
O comunicacional, especialmente após a emergência e a popularização da internet, tornou-se a chave para a explicação das relações sociais como um todo. E não como uma questão de “novas tecnologias”, simplesmente, e sim como um problema de vivência, sobrevivência e convivência humanas. Eis porque se trata de uma experiência mais ou menos generalizada da espécie humana nestes tempos, que demanda pesquisa empírica consistente para fazer emergir teorizações que lhes sejam consentâneas.
Signates: Sim, claro, porquanto, como eu afirmei antes, o estudo comunicacional da religião é a pesquisa de uma tensão simbólica altamente interessante: a das tendências, típicas de qualquer religião, entre a dogmatização, que expressa o controle da identidade, tarefa das institucionalidades, e a divulgação ou a conversão religiosa, que garantem a presença social relevante e o crescimento da quantidade de fiéis.
Mesmo os fundamentalistas convivem com essa tensão, malgrado reconheçamos que, no caso deles, o vetor da dogmatização pareça imperar sobre o da divulgação. Apesar disso, nem eles ficam ausentes por completo desse segundo vetor, caracterizando-se o fundamentalismo pela submissão deste ao primeiro, isto é, preocupa-se com a divulgação do dogma, da segurança doutrinária e dos eventuais riscos (no mundo sagrado ou no profano) da perda dessa segurança.
Penso que esse raciocínio pode ser uma chave heurística da comunicação para incidentes como os atentados terroristas praticados por religiosos fundamentalistas no mundo inteiro. Um atentado, como o que vitimou redatores do Charlie Hebdo na França, não é outra coisa senão uma medida midiática pela qual o fundamentalismo expressa sua condição conflitiva com o mundo. Pouco importa aos fundamentalistas que se matem essas ou aquelas pessoas, e sim que todos percebam isso como uma ação ou reação deles a um estado de coisas contra a qual eles absolutamente se colocam. Como no caso do atentado contra as torres gêmeas, em New York, os aviões não foram lançados contra os edifícios para se matarem aquelas pessoas, e sim para que o mundo visse e percebesse o movimento terrorista.
Signates: É preciso que se perceba a teorização que busquei fazer, a partir de Habermas (2012), como uma tensão dialética. Sistema e mundo da vida são estruturas em conflito, mutuamente dependentes no contexto das sociedades capitalistas contemporâneas. De um lado, temos um Luhmann relido por Habermas, demonstrando que os sistemas sociais são feitos de comunicação (os seres humanos são externos ao sistema da sociedade; para Luhmann (1998) são outros sistemas – os orgânicos –, para Habermas são as redes comunicacionais do mundo da vida); de outro lado, temos um Lefebvre (1968), repensado por mim, para observar como o cotidiano institucionaliza a comunicação para torná-la vetor de dominação e como a comunicação ultrapassa o tempo todo esse vetor, restaurando/recriando a história, a cultura, a sociabilidade.
A religião pode ser recortada nesse arranjo teórico a partir da aplicação dessa dialética à sua historicidade. Em geral, as religiões modernas exsurgem de movimentos contestatórios ou proféticos que, por alguma razão, não puderam ser assimilados pelas institucionalidades tradicionais, e, nesse caso, observa-se como, nas fraturas das estruturas sistêmicas, o mundo da vida religioso cria e desenvolve sentidos novos, que, não assimilados, ganham identidade própria.
Essa identidade, contudo, cedo clama por uma institucionalidade que garanta sua perenidade, sua reprodução e, mais tarde, sua segurança doutrinária, isto é, passa a se proteger das inovações posteriores… O condicionamento sistêmico acontece então, com o estabelecimento de ritos, hierarquias, sacralidades específicas que restringem o discurso e a prática dos novos fiéis e reencaminham a dogmatização, até que novas rupturas aconteçam e tudo comece de novo.
O cristianismo tem milhares de denominações, grandes e pequenas, por conta dessa prolífera forma de diferenciação, urdida no conflito jamais resolvido entre as estruturas sistêmicas em crise, desde o fim da Idade Média, e um mundo da vida de vivências e experiências religiosas cada vez mais conformado por relações comunicacionais, que insiste em produzir bricolagens, diferenciações e contradições.
O estudo dessa comunicacionalidade cada vez mais complexa, mas sempre conflitiva com as instituições religiosas, da forma como acontece em cada contexto, é o ponto focal do olhar da comunicação sobre a religião.
Na próxima semana o Mídia, Religião e Sociedade publicará a segunda parte da entrevista com Luiz Signates conduzida por João Damasio. Nela, Signates tratará sobre as especificidades do espiritismo brasileiro a partir de questões comunicacionais. Não perca!
TEXTOS PARA APROFUNDAMENTO
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. Vol. 1: Racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
LEFEBVRE, Henri. Critique de la vie quotidienne. Vol. I. Paris : L’Arche, 1968.
LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales: lineamentos para uma teoria general. Barcelona: Anthropos, México: Universidad Iberoamericana, Santafé de Bogotá: CEJA – Pontificia Universidad Javeriana, 1998.
SIGNATES, Luiz. A sombra e o avesso da luz: Habermas e a comunicação social. Goiânia: Kelps, 2009.
THOMPSON, John. Mídia e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2001.
Luiz Signates é professor associado I da Universidade Federal de Goiás (UFG), junto ao Mestrado em Comunicação e docente efetivo do Doutorado em Ciências da Religião Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Leciona também nos Cursos de Jornalismo de ambas as instituições. É Pós-Doutor em Epistemologia da Comunicação (Unisinos), Doutor em Ciências da Comunicação (USP), Mestre em Comunicação (UnB), Especialista em Políticas Públicas (UFG) e graduado em Comunicação Social – Jornalismo (UFG). Fundador e membro das Academias de Letras de Goiânia e de Aparecida de Goiânia, fundador e Presidente do Centro de Soluções em Tecnologia e Educação – CENTEDUC; e Sócio-Proprietário do Instituto Signates Consultoria, Pesquisa e Editoração Ltda. Coordena os Núcleos de Pesquisa em Comunicação, Cidadania e Política (UFG) e Comunicação e Religiosidade (UFG). É pesquisador nas áreas de Comunicação e de Ciências da Religião. No campo científico da comunicação, atua principalmente nas temáticas: epistemologia e metodologia da pesquisa em comunicação, comunicação e política, comunicação e religiosidade, comunicação e cidadania, e comunicação e teoria social crítica. Na área de ciências da religião, dedica-se ao estudo do espiritualismo brasileiro, com enfoques antropológico, sociológico e comunicacional.
Conheça textos de <<<Luiz Antonio Signates Freitas>>> publicados no Mídia, Religião e Sociedade.
João Damasio da Silva Neto é mestre em Comunicação (UFG), graduado em Jornalismo (Faculdade Araguaia), técnico em Sistemas de Informação (CEFET-Urutaí) e ator na Cia. Teatro Ser. Atualmente, é jornalista na secretaria nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Tem interesse em teoria e método da comunicação e estuda na interface com a antropologia da religião, com foco em espiritismo, urbanidade e mito.
Conheça textos de <<<João Damasio da Silva Neto>>> publicados no Mídia, Religião e Sociedade.
2 Comments
Luiz Signates, excelente entrevista. Gostaria ver alguns pontos aprofundados, mas entendo que trata se de materia nova.
[…] (UFG) e em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Na primeira parte da entrevista concedida ao seu ex-orientando Ms. João Damásio, o professor Signates expôs seu […]