Mídia, Religião e Sociedade: Ao ler os seus textos, pode-se distinguir dois tipos de análise sobre o fenômeno da midiatização da religião: 1) a pesquisa sobre o simbolismo religioso na comunicação midiática em geral; e 2) a pesquisa sobre as mídias de propriedade de instituições religiosas. Inicialmente, eu gostaria de conversar sobre o primeiro eixo de investigação. No texto “La concertation dans le discours du président Jacques Chirac: sur les traces d’une représentation mythique” (A concertação no discurso do presidente Jacques Chirac: nos traços de uma representação mítica) (BRATOSIN, 2004), o senhor argumenta que a utilização da noção de concertação (« concertation ») pelo ex-presidente francês comportava uma ideia mítica de poder decisional. A presença deste discurso sacralizado é produto, segundo seu estudo, da crise da representação política. Por que o campo político faz referência ao discurso religioso para confrontar esta crise?
Stefan Bratosin: Antes de tudo, eu gostaria de contextualizar esta distinção da qual você falou. Isto responderá ao mesmo tempo à sua questão.
O simbólico é o objeto sobre o qual meus estudos sempre estiveram concentrados. O símbolo tem sido objeto das minhas pesquisas há 30 anos. Mas se o objeto não mudou, o que mudou e, eu penso, continuará a mudar nas minhas pesquisas sobre a comunicação simbólica, é a delimitação do território das minhas pesquisas que avançam sempre na direção oposta. Em outros termos, quanto mais eu acumulo resultados e, implicitamente, conhecimentos, mais eu me sinto constrangido pela amplitude da tarefa científica que consiste em centralizar minhas interrogações em territórios mais restritos. Minha primeira ambição foi a de compreender o sentido da produção. Em seguida, examinei o engajamento do simbólico no comportamento humano com relação ao que a filosofia da cultura designa como « formas simbólicas ». Esta consideração me oferecia a alternativa de observar, no seu todo, a função do simbólico na atividade do espírito humano ou de conduzir minhas pesquisas em profundidade, limitando tanto quanto possível a uma só componente da função simbólica. Sem desprezar o todo sem o qual o detalhe não tem sentido, eu sou geralmente mais atraído pelo detalhe, sem o qual o todo não existe.
Assim, entre as funções de expressão, de representação e de significação, eu optei por me limitar tanto quanto possível minhas pesquisas à função da representação. A razão desta escolha era a relação privilegiada mantida pela função de representação com o pensamento mítico-religioso, formato simbólico que forja inevitavelmente não somente nossa visão de mundo, mas igualmente o mundo nele mesmo, formando-se através disso nossas crenças e nossa fé. A humanidade é o reflexo e semelhança de nosso pensamento mítico-religioso. Desde tempos antigos, o poder é exercido com mitos e as instituições validam os atos delas pelos rituais, mostrando assim que o espírito humano não pode ser amputado pelo pensamento mítico-religioso, mesmo nas sociedades mais seculares que se possa imaginar. Neste estágio das minhas observações, eu empreguei um novo enquadramento do campo empírico estudado e centrei minhas pesquisas sobre o pensamento mítico-religioso em espaços sociais institucionalizados: o espaço doméstico, o espaço organizacional e o espaço público. Considerando a representação religiosa nestes espaços, ou seja, este material composto que se destaca há milênios na instauração na consciência humana da ideia do exercício do poder, eu pude isolar duas realidades ativas camufladas pela multiplicidade de procedimentos que invadem nosso cotidiano.
Antes de tudo, eu poderia destacar que a representação religiosa é a principal ferramenta simbólica utilizada pelo homem para fazer a distinção entre aqueles que têm o poder e aqueles que não o tem. A concertação, esta forma de comunicação simbólica que todos os atores da ação coletiva buscam de maneira particular e à qual todos aderem independentemente da sua obediência ideológica ou das suas cores políticas, me forneceu, através do seu funcionamento e organização templária [em templos], uma demonstração eloquente que muitas das minhas publicações evidenciam, dentre elas esta, da figura francesa, o presidente Jacques Chirac. Neste artigo, eu destaco não somente o caráter transpolítico do pensamento mítico, mas também sua dimensão transreligiosa.
Mídia, Religião e Sociedade: Este texto sobre a « concertação » foi publicado em 2004 (na revista Argumentum). Hoje, qual a reflexão que o senhor faz sobre a representação política? Esta crise continua? Os discursos religiosos se manifestam também neste momento nas ações dos políticos e dos movimentos sociais, como o dos coletes amarelos (gilets jaunes[i])?
Stefan Bratosin: Isto me leva mais longe nas minhas observações, a resultados antecipados não somente neste estudo, mas desenvolvidos em outros que se seguiram. A segunda realidade é o paradoxo da pragmática da exclusão mútua do espaço público e o da igreja, enquanto que a coincidência histórica-teórica entre o espaço público e o da igreja é inegável. O que está em jogo desta realidade ontologicamente oposta a toda possibilidade científica, isto é, objetiva, de validar in loco, a separação absoluta entre o espaço público e a igreja me encorajou a reduzir o campo das minhas pesquisas às problemáticas do pensamento mítico religioso no espaço público.
Nesta perspectiva, a tese de uma sociedade pós-laica não me pareceu suficiente para reconciliar « espaço público » e religião em um funcionamento comum e racionalizado. Primeiro, porque não há sociedade pós-laica concreta porque nunca houve uma sociedade laica anteriormente. E depois, porque o pensamento mítico-religioso não é necessariamente irracional. É a razão pela qual nenhum filtro racional pode rejeitar o pensamento mítico-religioso das vozes que se expressam no espaço público. Isto implica que a presença ininterrupta do pensamento mítico-religioso, querendo ou não, seja tanto um componente do espaço público como da igreja, e que a problemática maior dessa presença é a midiatização do religioso.
Eu fui levado, portanto, a uma última limitação no tocante às minhas pesquisas, focando no pensamento mítico-religioso no espaço público midiático. O que me fascina hoje e me dá medo ao mesmo tempo, é a maneira pela qual o pensamento religioso domina o crescimento, a expansão e a acumulação de condições técnicas, sociais e econômicas, permitindo a midiatização de tudo (Bratosin, 2016).
O problema hoje não é mais saber como retirar a religião do espaço público ou como integrá-la ao espaço público. O que nós devemos compreender hoje, é a contribuição das novas mídias às mudanças dos processos de produção e de difusão do saber religioso e como os fiéis se relacionam uns com os outros de maneira mais geral e com a sua própria organização [religiosa], de maneira mais precisa, bem como o impacto sobre a organização religiosa induzido pela necessidade de integrar sua existência à realidade incontestável das novas tecnologias.
Mais precisamente, se a gente toma o caso dos coletes amarelos (Gillets Jaunes), por exemplo, pode-se observar este funcionamento em processo. O movimento dos coletes amarelos não é estruturado à semelhança de um movimento político, sindical ou de uma associação. Diferentemente das manifestações tradicionais, coordenadas por organizações sindicais, o movimento dos coletes amarelos foi lançado e se desenvolve inicialmente unicamente via Web, através das mídias sociais (Facebook, Twitter, YouTube). A midiatização deste movimento fez sobressair os aspectos seguintes: o religioso se torna novamente público, o social se torna novamente espiritual, o político se torna novamente dessecularizado. Em suma, trata-se da publicização do sofrimento humano e social, de um lado, e, de outro lado, da espiritualização do poder e da violência. Por conseguinte, dissociar o político e o religioso a fim de resolver as crises sociais pela sua hierarquização me parece um beco sem saída já que o religioso não pode ser submetido ao político e submeter o político ao religioso leva a crimes contra a humanidade.
Mídia, Religião e Sociedade: Este elo entre a política e a religião se manifesta não somente no domínio da linguagem, mas, também, na representação política em vários países, como a Romênia, que o senhor analisou no texto « Church, Religion and Belief : paradigms for understanding the political phenomenon in post-communist Romania » (Igreja, Religião e Crença : paradigmas para entendimento do fenômeno político na Romênia pós-comunista) (Bratosin, Ionescu, 2009). Quais são os interesses das instituições religiosas com relação à política e como nós podemos perceber a influência delas neste setor da sociedade?
Stefan Bratosin: Stefan Bratosin: Antes de tudo, se nós começarmos pela afirmação – considerada como correta – segundo a qual a gestão dos assuntos da Cité (ou seja, a polis) é incumbência dos políticos e a gestão dos assuntos da Igreja é tarefa do clero de uma parte e, de outra parte, que os políticos são obrigados a obedecer à lei, em outras palavras, à lei da Cité (polis), enquanto o clero é obrigado a obedecer às leis de Deus, nós devemos admitir que não administrar os problemas da Cité se revela fundamentalmente incoerente, uma vez que este é um dever dos políticos. Da mesma forma, pode-se falar do clero que não desempenha funções que dizem respeito aos assuntos da Igreja. Segundo o mesmo esquema lógico, a coerência política reside no « levar em conta » a voz do povo, enquanto que a coerência do clero não resulta no levar em conta o desejo dos fiéis, mas da realização da vontade de Deus. Então, em que a instituição religiosa e o mundo político interagem? Compreender a relação entre o religioso e o político se torna difícil porque na prática e no contexto da democracia, espera-se que a interferência das ações dos políticos e do clero diminua em função da influência e da modificação da forma do exercício do poder e da autoridade. A midiatização colocou em evidência como esta influência (recíproca) é exercida. Em suma, isto se produz quando os políticos não obedecem somente à voz do povo, mas também à voz da Igreja, ou quando o clero não obedece somente à Deus, mas também à vox populi. É um tipo de tautismo, o que significa uma situação na qual o religioso e o político estão misturados em função de interesses de poder, transformando assim o « espaço público » no local mais cobiçado para « legitimação » política do processo de dessimbolização da função democrática nela-mesma (isto faz parte das condições de possibilidades dos populismos atuais).
Mídia, Religião e Sociedade: Além de desenvolver uma abordagem interpretativa da midiatização, o senhor propôs os conceitos de « medialização » (médialisation) e de «pós neo-protestantismo» (post néo-protestantisme) no texto « La médialisation du religieux dans la théorie du post néo-protestantisme » (A medialização do religioso na teoria do pós néo-protestantismo) (BRATOSIN, 2016). Primeiro, eu gostaria de saber o que o senhor quer dizer quando apresenta a ideia de « medialização ». Quais são as diferenças entre este conceito e outros que refletem também sobre a comunicação midiática, como, por exemplo, os de mediação e midiatização?
Stefan Bratosin: Para mim, a mediação responde à questão do « como » o medium está implicado na produção de sentido pela transmissão e comunicação. A midiatização responde à questão do « como » a emergencia dos diferentes tipos de mídia muda a comunicação, a cultura e a sociedade. A midiatização foca na análise das transformações sociotécnicas propriamente ditas, geradas pela midiatização (Bratosin, 2016). A medialização diz respeito não somente e simplesmente à realidade objetiva das « mediações », das quais o intermediário ou o médium são necessariamente as mídias, mas também e sobretudo sobre a realidade razoável das combinações mentais e conceituais dos processos de midiatização e sobre os efeitos destes processos (Jeffrey, 2011; Durand, 2011).
Mídia, Religião e Sociedade: : E sobre o «pós néo-protestantismo», quando o senhor o propôs não havia pensado em uma igreja específica, mas em uma lógica religiosa que se manifesta no mundo atual. Quais são as características desta lógica? E como a « medialização » está implicada no fenômeno do « pós néo-protestantismo »?
Stefan Bratosin: O «pós néo-protestantismo » não é efetivamente uma corrente religiosa, mas um paradigma na compreensão do religioso. Ele não é entendido como uma simples etapa que sucede o néo-protestantismo, mas uma « virtualização, ou seja, o produto de uma mutação ontológica do néo-protestantismo pelo deslocamento de sua atualidade a uma esfera fenomenológica problematizante » (Bratosin, 2016, p. 406). No contexto do pós-modernismo, o pós néo-protestantismo é um paradigma generalizado que « inventa questões, problemas, dispositivos geradores de atos, linhagens de processos, máquinas de tornar-se (Lévy, 1998, p. 138) em termos não somente de conteúdo discursivo néo-protestante, mas também de modelo de comunicação empregado no espaço público» (Bratosin, 2016, p. 406). « O objetivo do pós neo-protestantismo é responder a uma busca de espiritualidade sem deixar os membros da comunidade correrem o risco de estar fechados novamente dentro de uma igreja, culto, seita etc. Trata-se de viver a experiência religiosa néo-protestante – mas não somente – em um lugar simbólico sem fronteiras, nem limites, integrado no espaço público midiático. As noções de ‘debate’ e de ‘transparência’ são aqui fundamentais » (Bratosin, 2016, p. 407).
Quatro características compõem o pós neo-protestantismo:
1. repensar a organização religiosa e mesmo sua rejeição, uma vez que o neoprotestantismo é fundador de organizações religiosas;
2. a crítica das instituições religiosas, contrariamente ao neoprotestantismo pelo qual o estabelecimento e a promoção das instituições (editoras, escolas, universidades, hospitais, empresas etc) foi e permanece ainda não somente uma prioridade, mas igualmente o principal meio de desenvolvimento organizacional.
3. o papel social pela influência da fé e, nesta perspectiva, o desenvolvimento de uma « parateologia » (parathéologie) de natureza social. Seu conteúdo seria um conjunto mais ou menos organizado de questões e de problemas tornados públicos, ou seja, midiatizados, por neoprotestantes, a maioria deles deslocados (e descentralizados) em relação ao posicionamento ideológico e funcional das suas organizações confessionais de origem. O pós neoprotestantismo não inventa nada de novo, mas transmuta esta opção teológica do espaço religioso no espaço público, ou seja, de um sistema simbólico dentro em um sistema de signos que corresponde à mutação de um paradigma de interpretação em um outro paradigma de sentido.
4. o deslocamento do centro funcional do agir religioso da igreja, templo ou o equivalente a isso, ou seja, do lugar físico e local de encontro, para uma comunidade virtual e global. De fato, o que caracteriza fundamentalmente e que permitiu o nascimento do pós-neoprotestantismo destaca-se da independência entre as mudanças surgidas no mundo das mídias, no mundo religioso e no olhar pósmoderno que o mundo religioso tem sobre ele mesmo. Esta interdependência se constrói no cruzamento de quatro principais fenômenos medializados. Assim, o primeiro fenômeno medializado observável do qual se aproveita o pós-neoprotestantismo é o aumento, a expansão, a acumulação de condições técnicas, sociais e econômicas permitindo a « midiatização de tudo ». A questão posta imediatamente pelo pós-neoprotestantismo a todas as confissões, mais ou menos tradicionais, mais ou menos protestantes ou neo-protestantes, é de saber como as novas mídias contribuem às mudanças dos processos de produção e difusão de conhecimentos religiosos, e como os fiéis se relacionam entre si de maneira mais geral à sua própria organização religiosa incitados pela necessidade de integrar à sua existência a realidade incontornável das novas tecnologias. Esta extensão ou esta função « multimídia » da medialização é acompanhada por um segundo fenômeno medializado do qual se aproveita o pós-neoprotestantismo e que corresponde à função « escópica » da transmissão de informações religiosas. As mídias escópicas (Knorr, 2012) são tecnologias de tela de projeção que tornam presentes fenômenos longíncuos e que seriam de outra forma invisíveis (ver, por exemplo, McLuhan, 1964 ; Jay 1993 ; Le Paige et Wolton, 2004). Estas mídias escópicas transformam as situações sociais, como por exemplo a do agir religioso, em situações de síntese e substituição das relações face a face por relações face a tela. Mais exatamente, considerando a dominação crescente das tecnologias da informação e da comunicação em todos os domínios da vida religiosa, o pós-neoprotestantismo propõe uma alternativa à vivência religiosa em relação às necessidades e constrangimentos da sociedade atual. Diversos sites evangélicos, adventistas, pentecostais, batistas, etc, facilitam as apresentações ao vivo ou de programas religiosos previamente gravados, comuns ou especiais em escala planetária. A mistura ou a mixagem das atividades de recepção e/ ou de transmissão das informações com outras atividades em um amálgama de atividades híbridas – ouvir um concerto ou olhar um jogo de futebol pelo celular durante a aula na unidade, a recepção ou o envio de uma SMS pessoal durante uma reunião de trabalho ou enquanto se dirige o carro etc – é o terceiro principal fenômeno medializacional do pós-neoprotestantismo. Enfim, o quarto fenômeno medializacional que o pós-neoprotestantismo se apropria do mal hábito e dos vícios da adaptação à utilização individual generalizada das ferramentas midiáticas – blogs, wikis, Facebook, etc. – para transmitir informações e para criar comunidades virtuais. Três tecnologias revolucionárias marcaram a passagem para esta acomodação individual com a utlização das novas mídias e o pós-neoprotestantismo as pegou para si, servindo-se das mesmas: a alta velocidade da internet, a conexão web sem fio e as mídias sociais (Bratosin, 2016).
Mídia, Religião e Sociedade: Na sua conferência no I Seminário de Midiatização e Processos Sociais da Unisinos (2016), o senhor a associou a « medialização » e o « pós-neoprotestantismo » ao capitalismo afetivo. Ou seja, não se pode dissociar estes dois conceitos da sociedade atual, desta nova forma de capitalismo. Como o senhor compreende o que se denomina por « capitalismo afetivo » e quais são as conexões com o fenômeno da medialização do fenômeno religioso contemporâneo?
Stefan Bratosin: Para mim, a ética pós-neo protestante é uma ética fundada sobre um comportamento que deixa pouquíssimo espaço ao pensamento crítico (Paul et Binker, 1990 ; King et Kitchener, 1994 ; Fisher et Scriven 1997) abrindo o caminho para uma economia do afeto (Bratosin, 2018a). Esta ética pós-neoprotestante que remodelada no contexto do relativismo generalizado e da “liquidade” das instituições (Bauman, 2013) através do fenômeno da medialização. Há, então, relações entre as estratégias de comunicação da fé no espaço público e as novas estratégias de influência econômica elaboradas pela medialização como modelo interativo de comunicação pública (como eu já apresentei anteriormente). Pela medialização da fé adaptada às necessidades sentidas, o pós neo-protestantismo se afirma como movimento de pensamento não apenas religioso, mas igualmente socioeconômico que vira as costas ao evangelho da prosperidade a fim de promover a vivência afetiva na historicidade ordinária do acontecimento cotidiano não como uma promessa, mas como um estilo de vida fundado sobre a experiência imediata e personalista das emoções. A medialização da fé adaptada às necessidades sentidas desencadeia, portanto, pela natureza de sua substância uma virtualização da ética da reatividade pulsional, ou seja, a ética pós-neoprotestante. Esta virtualização tem três consequências principais com fins sócioeconômicos. Primeiramente, ela desencadeia e acompanha no espírito capitalista o deslocamento da função performativa do «que é central, persistente e distinto no caráter de uma organização » (Albert et Whetten, 1985 ; Chédotel, 2004), ou seja, da identidade organização, através do afeto como componente ontológica do ser humano a favor da digitalização. A segunda consequência da virtualização da ética pós-neoprotestante da relatividade pulsional é o fato de que, na sua esteira, ela traz dentro do espírito capitalista uma inversão do sentido de eficácia simbólica no exercício do poder econômico, uma vez que não é mais a religião que acolhe o simbolismo do capitalismo, mas o contrário, o capitalismo que se apropria dos lugares simbólicos da religião. Por fim, a terceira consequência principal desta virtualização é de natureza estratégica, porque ela marca o espírito capitalista pelo sentido soteriológico do cristianismo do qual a manifestação é o fato de que a fim de atender objetivos econômicos, não se trata mais de colocar o homem no centro da atividade sócioeconômica, mas de se colocar o homem emocionalmente em busca da realização espiritual e material. Na lógica do princípio da virtualização, todas estas consequências competem à medialização do espírito do capitalismo « afetivo ». Por exemplo, pensar a « promoção » como um tipo de « evangelização » não é mais do que a extensão do capitalismo da « informação e da comunicação », mas uma verdadeira mudança, não do conteúdo do capitalismo, mas da ramificação em ato de seu funcionamento « afetivo ». Trata-se de substituir o funcionamento fundado sobre o medo e a desconfiança por um funcionamento democratizado de confiança e alegria a favor do anúncio das boas novas segundo o modelo fundador do Evangelho.
Um exemplo. A evangelização neoprotestante e a « nova evangelização » católica têm um mesmo lugar manifesto em comum: a medialização da fé adaptada às necessidades sentimentais. Esta observação empírica deriva da comunidade fenomenológica duas evidências : a) a pregação neoprotestante que « se quer ser uma mensagem para o coração (…), insiste nas experiências e (…) quer responder às necessidades sentimentais do público » (Bratosin, 2016) e b) a mobilização evidente do Vaticano que – já que « vê uma atenção egocêntrica voltada unicamente para as necessidades individuais » e se desenvolver uma « cultura do efêmero, do imediato, da aparência, ou seja, uma sociedade incapaz de ter uma memória e um futuro » – pede aos católicos « que tenham a audácia de frequentar os novos aerópagos, aprendendo a dar a eles um valoração evangelística, encontrando os instrumentos e que podem ser ouvidos nesses locais também como patrimônio e conhecimento educacional, preservados na tradição cristã » (Secretaria-Geral do Sínodo dos Bispos, 2012, p. 31-32). A questão, portanto, de distinguir entre a evangelização néo protestante atual e a « nova evangelização » católica é – ao menos nesta perspectiva – não apenas inútil, mas contraprodutivo metodologicamente, por serem presas da medialização, estas duas evangelização compõem juntas um único e mesmo corpo pela mesma maneira transorganizacional, transconfessional ou mesmo transreligiosa de viver a fé, o que eu chamei de pós neoprotestantismo (Bratosin, 2016, 2018a).
Nota:
[i] O movimento dos gilets jaunes (coletes amarelos) teve início em outubro de 2018 a partir da insatisfação popular com o aumento no preço dos combustíveis. As manifestações se espalharam por todo território francês e passaram a reivindicar menos impostos sobre as classes média e baixa, o aumento do salário mínimo e o impeachment do presidente Macron.
TEXTOS DO AUTOR CITADOS NA ENTREVISTA
BRATOSIN, Stefan. Medialização, espírito pós-neoprotestante e ética do capitalismo “afetivo”.In: FERREIRA, Jairo, ROSA, Ana Paula da, FAUSTO NETO, Antônio, BRAGA, José Luiz, GOMES, Pedro Gilberto. Entre o que se diz e o que se pensa: onde está a midiatização? Santa Maria FACOS-UFSM, 2018a, pp. 181-208.
BRATOSIN, Stefan, TUDOR, Mihaela-Alexandra. The Romanian Religious Media Landscape: Between Secularization and the Revitalization of Religion. In: Journal of Religion, Media and Digital Culture, 7, 2018b, pp. 223-250
BRATOSIN, Stefan. La médialisation du religieux dans la théorie du post néo-protestantisme. In: Social Compass, 63(3), 2016, pp. 405-420.
BRATOSIN, Stefan; IONESCU, Mihaela-Alexandra. Church, Religion and Belief : paradigms for understanding the political phenomenon in post-communist Romania. In: Journal for the Study of Religions and Ideologies, 8, 24, 2009, pp. 3-18
BRATOSIN, Stefan. La concertation dans le discours du présidant Jacques Chirac: sur les traces d’une représentation mythique. In: Argumentum, Université d’Iasi, Roumanie, nº3, 2004, pp. 11-35.
TEXTOS CITADOS PELA AUTORA NA ENTREVISTA
ALBERT, S., WHETTEN, D.A.. Organizational Identity. In: Research on Organizational Behavior. 7: 263-295, 1985.
BAUMAN, Z. Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press, 2013.
BOUTINON, J.C.. La prédication pentecôtiste, 2012. Disponível em: http://docplayer.fr/22636008-La-predication-pentecotiste.html
CHÉDOTEL, F.. L’ambivalence de l’identification organisationnelle: revue de littérature et pistes de recherche. In: Management & Avenir. 1, 2004, pp. 59-75.
DURAND, G.. Entretien avec Gilbert Durand. In: ESSACHESS. Journal for Communication Studies 4 (2/8), 2011, pp. 13–16.
FISCHER A., SCRIVEN, M.. Critical thinking Its definition and assessment. Centre for research in Critical Thinking, 1997.
JAY, M.. Les régimes scopiques de la modernité. In: Réseaux, 11(61), 1993, pp. 99–112.
JEFFREY, J. D. Le sacré entre médiations et ruptures. In: ESSACHESS. Journal for Communication Studies 4(2/8), 2011, pp. 31–46.
KING, P. M., KITCHENER, K. S.. Developing Reflective Judgment: Understanding and Promoting Intellectual Growth and Critical Thinking in Adolescents and Adults. Jossey-Bass Higher and Adult Education Series and Jossey-Bass Social and Behavioral Science Series. Jossey-Bass, 350 Sansome Street, San Francisco, CA 94104-1310, 1994.
KNORR, C.K.. Skopische Medien: Am Beipiel der Architektur von Finanzmärkten. In: HEPP, A. KROTZ, F. (orgs.): Mediatisierte Welten: Beschreibungsansätze und Forschungsfelder. Wiesbaden: VS Verlag, 2012, pp. 167–195.
LE PAIGE, H., WOLTON, D.. Télévisions et civilisations. Bruxelles: Editions Labor, 2004.
LÉVY, P. Qu’est-ce que le virtuel. Paris: Editions La Découverte, 1998.
MCLUHAN, M. Pour comprendre les media: les prolongements techniques de l’homme. Paris: Le Seuil, 1964.
PAUL, R.W., BINKER, AJA. Critical thinking: What every person needs to survive in a rapidly changing world. Center for Critical Thinking and Moral Critique, Sonoma State University, Rohnert Park, CA 94928. 1990.
PARA CITAR ESTA ENTREVISTA
BRATOSIN, Stefan.. Midiatização, espiritualização do espaço público e o pós-neoprotestantismo – entrevista com Dr. Stefan Bratosin. [04/05/2020]. Mídia, Religião e Sociedade (site). Entrevista concedida a Marco Túlio de Sousa. Disponível em: https://midiareligiaoesociedade.com.br/midiatizacao-espiritualizacao-do-espaco-publico-e-o-pos-neoprotestantismo-entrevista-com-stefan-bratosin/. Acesso: (data)
Stefan Bratosin é doutor em Ciências da Informação e da Comunicação pela Universidade Charles de Gaulle de Lille 3, é professor titular na Universidade Paul Valéry de Montpellier 3 (France). É doutor honoris causa por diversas universidades. Atualmente, é diretor ajunto do CORHIS, diretor do IARSIC (Institute for Advanced Religious Studies and Communications Internetworking) e da revista científica Essachess. Suas pesquisas contemplam os seguintes eixos: a) espaço público, midiatização e religião; b) mediações culturais e formas simbólicas nas organizações e c) produção de sentido no contexto prático organizacional.
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A entrevista integral desta entrevista será publicada em obra organizada pelo Mídia, Religião e Sociedade. Acompanhe as atualizações nossa página no facebook e não perca as novidades.