Magali do Nascimento Cunha: Deu-se por conta do processo de adaptação das igrejas e grupos evangélicos às dinâmicas socioculturais e políticas, por conta do projeto de ocuparem o espaço público e ter mais visibilidade social. Vários desses grupos perceberam (e aqui falamos de pentecostais e grupos de avivamento, pentecostalizados, nas igrejas históricas) que se mantivessem as práticas ascéticas/ puritanas, de separação da sociedade e demonização do ‘mundo” (a crença de que tudo o que não é igreja jaz no maligno) nunca ganhariam espaço social. O reforço ao individualismo, aliado à facilitação do trânsito religioso, é uma das características da adaptação da religião à contemporaneidade, que se agrega a elementos como a construção de megatemplos, para megaigrejas (dentro da lógica dos espaços “mega” das grandes metrópoles), o culto como espaço de oferta de bens religiosos para consumo (dentro da lógica de se dar amplo espaço ao prazer, ao consumo, ao hedonismo e ao bem-estar individual) e a espetacularização proporcionada pelo acesso à tecnologia e à mídia.
Aliam-se a esta característica a pregação da prosperidade e da guerra espiritual, a oferta de cura para doenças e de exorcismo do mal como alívios diante da degradação da vida promovida pelo mercado. Nesse caso, os vencedores da grande competição social por um espaço no sistema seriam os “escolhidos de Deus” e a acumulação de bens materiais interpretada como as bênçãos para os “filhos do Rei” (ou “Príncipes”). Na mesma direção, prega-se que é necessário “destruir o mal” que impede que a sociedade alcance as bênçãos da prosperidade, por isso, os “filhos do Rei” devem invocar todo o poder que lhes é de direito para estabelecer uma guerra contra as “potestades do mal” representadas, no imaginário evangélico, principalmente pela Igreja Católica Romana, pelos cultos afro-brasileiros, pelos promotores da Nova Era, e, mais recentemente, pelos movimentos feministas pró-liberalização do aborto e outros direitos às mulheres e LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Inter-sexuais).
Nessa adaptação à contemporaneidade é possível identificar ainda o surgimento das tribos evangélicas – jovens que unem lazer e vivência religiosa, como nas noites de sábado – e dos espaços de consumo e lazer evangélico. É assim que se manifesta o fenômeno da segmentação (surgimento de igrejas voltadas para grupos específicos, como jovens, esportistas, roqueiros, grupos undergrounds, gays), que é muito próprio da dinâmica urbana, especialmente de metrópoles, coerente com a lógica mercadológica que rege a realidade sociocultural do tempo presente. Isto é, a busca de satisfação individual que torna possível, por meio da oferta, uma escolha do tipo de proposta religiosa que satisfaz a necessidade mais premente, seja ela de tipo de culto (moderno ou tradicional), de bênção material (cura, pedido de emprego, de sucesso no relacionamento amoroso) ou mesmo de socialização compreendida como “sadia”.
Todo esse contexto revela como o cenário religioso evangélico no Brasil tem sofrido significativas transformações na dinâmica de adaptação à contemporaneidade, o que media a configuração de novas formas culturais religiosas. A cultura gospel é uma delas.
Outro elemento adaptativo está relacionado ao modelo intervencionista por meio da busca de programas de alívio para os que sofrem as injustiças, e, para isso, igrejas muitas vezes associam-se a lideranças governamentais e outras, que visam à manutenção de posições ou ascensão na vida política (cargos eletivos, por exemplo). Essas associações são realizadas também, com frequência, com vistas a algum benefício para a própria igreja: financiamento de construções, visibilidade social, aquisição de espaços em TV e Rádio. Daí a ocorrência de duplicidade de serviços e até concorrência de igrejas com outras organizações presentes e atuantes socialmente.
A maior presença dos evangélicos no campo da política partidária é também parte deste contexto. Desde o Congresso Constituinte de 1986 e a formação da primeira Bancada Evangélica e seus desdobramentos, a máxima “crente não se mete em política” foi sepultada. A máxima passou a ser “irmão vota em irmão”. Esse modelo de relação igreja-sociedade reflete a preocupação das igrejas com sua presença física na sociedade, com vistas ao alcance de visibilidade e reconhecimento.
Magali do Nascimento Cunha: A principal delas é a diluição ainda maior das fronteiras entre o sagrado e o profano. As grandes mídias (seculares) passaram a interagir com os evangélicos neste processo de conquista de espaço na esfera pública (no mercado e na política), o que inclui a produção de programas, ou parcelas deles, para disputar audiência cristã: espaço para a música cristã contemporânea (“gospel”) e seus artistas, patrocínio de festivais e megaeventos de rua, veiculação de programas de entretenimento com temática religiosa (inclusive com a criação de personagens para telenovelas). Os evangélicos também passam a ter mais espaço na cobertura jornalística que envolve religião. Com isto, consolida-se a figura das celebridades religiosas do segmento. É um movimento novo, que deve ser monitorado, e que introduz um padrão da fé evangélica que forma boa gente, estimula a caridade, mas é conservador em diversos aspectos socioculturais, em especial quanto à sexualidade e o lugar da mulher na sociedade.
Há ainda um fenômeno mais recente e instigante: a popularização das mídias digitais que faz parte do processo de ampliação de espaço e visibilidade pública dos evangélicos. A dimensão da participação e da transformação dos receptores em emissores, por meio de processos de interação possibilitados pelas novas mídias, especialmente, pela internet, mudou radicalmente o quadro da relação igrejas-mídias. É desafio a ser respondido enumerar todas as páginas na internet ligadas a grupos cristãos, listadas pelos mecanismos de busca na rede: elas são milhares e a relação inclui desde as institucionais, de todas as denominações cristãs, passando pelas mais artesanais, montadas por grupos de igrejas, até as mais sofisticadas e mais acessadas pertencentes a grupos musicais ou grupos de mídia.
Quando pensamos nas mídias sociais, a infinidade de articulações e espaços é nítida. Igrejas e grupos cristãos perceberam que as mídias podem não apenas apresentar o Evangelho e dar visibilidade, mas podem articular, promover socialidade, firmar comunidade. Isto passou a dar novo caráter para a relação das igrejas com as mídias. Até porque, com a ideia de convergência de mídias (TV, rádio, computador e telefone celular conectados), um programa já não é só projetado para emitir, mas tem a dimensão da interação estimulada. Abriu-se mais espaço para encontros, trocas de ideias, debates, informações, divulgações. A dimensão da comunicação como interação/comunhão fica potencializada. A socialidade promovida pelas mídias digitais facilita a socialidade cristã e a evangelização.
Por outro lado, as igrejas passam a não ter mais o controle do sagrado e da doutrina como tinham antes. A abertura para a participação e para que qualquer pessoa que professe uma fé, vinculada ou não formalmente a uma igreja, manifeste livremente suas ideias, reflexões e opiniões, tirou o controle dos conteúdos disseminados das mãos das lideranças. Basta ter um simples blog, nos fartos espaços gratuitos, ou uma conta sem custo nas mais populares redes sociais digitais, e o espaço está garantido para a livre manifestação.
Dessa forma, doutrinas e tradições teológicas passaram a ser relativizadas, bem como a autoridade dos líderes clássicos – pastores e presidentes de igrejas. Questionamentos de afirmações confessionais são pregados, críticas são explicitadas. Esta é uma característica forte dos espaços midiáticos digitais: as pessoas se sentem liberadas e encorajadas para expressarem o que nunca expressariam num encontro face a face. Processo que ainda faz emergir das mídias novas autoridades religiosas – celebridades (padres e pastores midiáticos, cantores gospel), blogueiros – que se tornam referência para o modo de pensar, agir, ver o mundo, de muitos cristãos.
A perda do controle dos discursos e dos símbolos religiosos por parte das autoridades eclesiásticas tem também aberto espaço para experiências lúdicas nas mídias digitais que expressam elementos clássicos da fé em espaços de entretenimento e de humor. Isso é bem recebido por alguns públicos e gerador de incômodo em outros, o que tem potencializado muitas polêmicas nas redes digitais.
Outro elemento que se destaca neste processo de “ocupação cristã das mídias digitais” é o espaço conquistado pelos desvinculados do ponto de vista eclesiástico – os chamados sem-igreja ou desigrejados. Pessoas que professam a fé cristã e que por alguma razão decidiram pela desvinculação institucional, mas desejam continuar partilhando da fé em comunidade e expressando publicamente reflexões, ideias, experiências, opiniões. Se isso já acontecia no nível presencial com as comunidades alternativas que sempre existiram, com as mídias digitais foi ampliada a possibilidade de encontro e interação dessas pessoas, com a formação de comunidades virtuais.
Vale destacar ainda que na segunda década dos anos 2000 temos uma nova face do conservadorismo religioso, um neoconservadorismo, que emerge como reação a transformações socioculturais que o Brasil tem experimentado, em especial a partir dos anos 2002, com a abertura e a potencialização de políticas do governo federal voltadas para direitos humanos e gênero. O “neo” se deve à visibilidade mais intensa de lideranças evangélicas que se apresentam como pertencentes aos novos tempos, em que a religião tem como aliados o mercado e as tecnologias, mas que se revelam defensoras de posturas de um conservadorismo explícito. Lideranças midiáticas se fortalecem na esfera pública, entre pastores, pastoras, políticos, cantores gospel e novas celebridades religiosas (blogueiros e youtubers, por exemplo, sinalizando a força da internet, como eu já mencionei). Além da visibilidade midiática que as transforma em autoridades/referências religiosas que ultrapassam até mesmo os arraiais evangélicos, essas pessoas têm em comum, discursos de rigidez moral e de conquista de poder na esfera pública.
Magali do Nascimento Cunha: É claro que temos neste processo um movimento do Grupo Globo em torno das transformações, a partir dos anos 90, estimuladas por dois fenômenos ligados ao campo religioso brasileiro e interligados entre si: (1) o fortalecimento do ramo Pentecostal entre os evangélicos, com o surgimento de um sem-número de igrejas autônomas, autóctones, o que transformou o cenário religioso, em especial do Cristianismo, religião majoritária no País; (2) a consolidação da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) como uma igreja midiática, com um claro projeto político de ocupação de espaços de poder na esfera pública. Para isso, tornou-se uma igreja com amplo poder de arrecadação financeira e de aplicação destes recursos em empresas de mídia, passando a ser, em pouco menos de duas décadas, o segundo império midiático do país.
A isto se conecta o crescimento do chamado mercado da religião. Os cristãos tornam-se um segmento de mercado, com produtos e serviços especialmente desenhados para atender às suas necessidades religiosas de consumo de bens, de lazer e de entretenimento. Empresas seculares passam a produzir bens de consumo identificados com a religião cristã. Gravadoras importantes na indústria fonográfica abrem espaço para o segmento cristão.
Este quadro de avanço da presença dos evangélicos no espaço público, fragilização do catolicismo tradicional (com o qual o Grupo Globo sempre revelou afinidade) e consolidação de um império de comunicação concorrente, provocou reações da família Marinho. Como você reconhece na pergunta, havia inicialmente uma atitude de combate aos evangélicos, identificado pelo Grupo Globo com a IURD, mas posteriormente, na segunda década dos anos 2000, esta postura foi transformada, com estratégias de aproximação que você bem relata na questão. A dimensão mídia-indústria cultural/mercado não é desprezada, bem como se consolida a compreensão de que os evangélicos não se reduzem à IURD.
Mas é importante observar que a entrada do Grupo Globo nos negócios cristãos é um destaque, mas não pode ser vista apenas um fenômeno mercadológico: é também cultural. Este fato não apenas amplia o mercado da religião, já bastante expressivo e consolidado, mas também fortalece a religião de mercado e amplifica o poder do discurso da empresa no campo religioso e político. E aqui, pode-se identificar que o tradicionalismo religioso do Grupo Globo relacionado à fé católica tem ecos na representação da fé evangélica feita pela empresa. O Grupo encontrou sintonia com a moderna música gospel e os doutrinadores a ela relacionados que se revelam bastante afinados com conteúdos do tradicionalismo evangélico que enfatiza o individualismo na relação com Deus e na busca da salvação da alma e a separação igreja-mundo, que restringe causas sociais ao assistencialismo aos carentes.
Da mesma forma, o Grupo Globo firmou parceria com lideranças evangélicas midiáticas identificadas com a ideologia/teologia do mercado e com a política conservadora no campo das lutas sociais. Pode-se afirmar ainda que o conteúdo da aproximação com os evangélicos potencializa o poder político de líderes como o pastor Silas Malafaia, assessor do Grupo Globo, que alcançou o status de referência para a Frente Parlamentar Evangélica.
Nesse sentido, o Grupo Globo revela desejar sintonia com os evangélicos, garantia de audiência e controle do mercado, mas opta por uma identidade evangélica tradicional e conservadora ideológica e politicamente.
Na próxima semana o Mídia, Religião e Sociedade publicará a segunda parte da entrevista. Nela, a professora Dra. Magali do Nascimento Cunha aprofunda alguns pontos já apresentados anteriormente, em especial, a relação dos evangélicos com a política, tanto dos setores conservadores que fazem parte da bancada evangélica, quanto de grupos progressistas que procuram se organizar a partir da internet.
Magali do Nascimento Cunha é doutora em Comunicação pela Universidade de São Paulo (2004), Mestre em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (1997) e Graduada em Comunicação Social (Jornalismo) pela Universidade Federal Fluminense (1985). Atualmente é professora da Universidade Metodista de São Paulo, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Líder do Grupo de Pesquisa Mídia, Religião e Cultura (MIRE) e coordenadora da Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial (ECLESIOCOM). Tem experiência nas áreas de Comunicação e Cultura, Comunicação e Imaginário e Comunicação e Religião, com ênfase nos seguintes temas: comunicação, cultura, religião, evangélicos, política, análise do discurso, mídia. Integra a Associação Internacional Mídia, Religião e Cultura (International Association Media Religion and Culture), é representante da Universidade Metodista de São Paulo na Associação Mundial de Comunicação Cristã, Seção América Latina (WACC-AL), e é colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas, com sede em Genebra/Suíça.
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2 Comments
Ótima entrevista!!!
[…] publica a segunda parte da entrevista com a professora Dra. Magali do Nascimento Cunha. Na primeira parte, ela abordou o processo de constituição da cultura gospel e suas transformações mais recentes. […]