05/09/2018
Por Tatiane Milani (mestranda – Unisinos)

 

Foto de Moisés Sbardeloto

 

O Mídia, Religião e Sociedade entrevistou o Dr. Moisés Sbardelotto, autor dos livros “E o Verbo se fez rede: Religiosidades em reconstrução no ambiente digital” e “E o Verbo se bit: a Comunicação e a Experiência Religiosa na Internet”. Nessa entrevista conversamos sobre seu percurso a partir da temática mídia e religião. Sbardelotto também compartilhou conosco um pouco de sua experiência ao adentrar nas salas de Comunicação do Vaticano, e como o diálogo com os comunicadores de lá foi importante para sua pesquisa.

 

Mídia, Religião e Sociedade (MRS): Como você iniciou sua trajetória de pesquisa com a interface de comunicação e religião? E porque voltado à Igreja Católica?

Moisés Sbardelotto: A pesquisa nessa interface começou depois da minha graduação. Por um lado, eu tinha a minha trajetória pessoal como católico, tendo nascido em uma família católica e participado da Igreja desde cedo. Depois de formado, passei um tempo trabalhando, sem me interessar pelo campo acadêmico. E então surgiu a oportunidade de trabalhar na Unisinos, no Instituto Humanitas Unisinos (IHU), como coordenador do escritório brasileiro da Fundação Ética Mundial, fundada pelo teólogo suíço Hans Küng. A partir dos trabalhos do IHU com eixos voltados às religiões, e nas suas publicações em geral, aparecia um debate bastante avançado. Ideias que em geral eu não via fora do IHU, relacionando a questão da Igreja com pontos de vista inovadores.

Esse trabalho foi despertando o interesse mais forte pela pesquisa, para aprofundar certas questões que eu não via em alguns ambientes dentro da Igreja, com uma visão mais aberta, com mais fôlego. Conversando com o diretor do IHU, Pe. Inácio Neutzling, ele me sugeriu que eu fosse conversar com o Pe. Pedro Gomes, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação na Unisinos e que pesquisa a interface com a religião. Na conversa, eu manifestei o meu interesse pelo digital, que já vinha desde a graduação na UFRGS, em que eu estudei, como monografia de conclusão de curso, uma aproximação entre os nascentes blogues e o papel da “imprensa alternativa” nos anos 1960-1980. E o Pe. Pedro me sugeriu avançar na questão do digital, relacionando com a Igreja. Ele me dizia que a própria pesquisa dele já tinha passado pela questão dos televangelistas, da TV, do rádio e que já havia vários estudos sobre as outras mídias, mas ainda pouca coisa sobre religião em geral na internet, e muito menos sobre Igreja Católica, especificamente.

Então, comecei a pensar, fiz uma varredura, um estado da arte daquilo que já vinha sendo publicado. Aqui na Unisinos, não tinha quase nada em termos de pesquisa relacionando o digital e o fenômeno religioso. Tinha sobre outras frentes, sobre revistas católicas, canais católicos, os programas de TV católicos, mas quase nada sobre a internet. E, na pesquisa internacional, os estudos também eram bem poucos nessa área ainda. Estava começando o “auge” das pesquisas de religião e internet. Ali nasceu o projeto que depois levou para o meu mestrado, que foi sobre os sites católicos: a experiência comunicacional de como o usuário acessa esse site, o que ele faz lá dentro, o que os sites oferecem para os usuários em termos de experiência religiosa, como as “capelas virtuais”.

Depois, isso levou ao livro, que foi publicado com o título “E o Verbo se fez bit” (Santuário, 2012). Então, essa foi mais ou menos trajetória, por um lado o caminho acadêmico e profissional, que foi me aproximando cada vez mais para refletir as questões da Igreja Católica, e, por outro lado, a minha vivência pessoal, de formação, que já era dentro do catolicismo. O cruzamento do IHU com a pesquisa e a minha vivência pessoal fez um “caldeirão” bem interessante e me levou a refletir criticamente sobre aquela experiência que eu trazia de berço. Então, foi uma experiência bem rica, porque a minha própria vivência pessoal como católico teve um crescimento, e a minha bagagem católica também me ajudou na pesquisa para transitar nos conceitos, nos movimentos comunicacionais que a Igreja vinha fazendo.

MRS:  Pensando sobre a Igreja Católica, como você avalia o desenvolvimento das pesquisas que tratam da relação desta instituição com os processos comunicacionais? É lógico que há uma longa evolução ao longo dos anos no quesito meios de comunicação, mas como você percebe essa evolução?

Moisés Sbardelotto: Eu acho que  as pesquisas sobre a Igreja Católica e sobre o catolicismo têm avançado no sentido de manter um certo distanciamento, uma certa visão crítica daquilo que acontece dentro da instituição. Mesmo em pesquisadores que são engajados com a instituição, as pesquisas conseguem ser bastante críticas sobre o processo que a Igreja vem vivendo. Conseguem analisar isso com um certo distanciamento, no sentido de poder entender a própria ação da Igreja como ação de uma instituição, como qualquer outra, que tem seus acertos e seus erros, deixando de lado uma visão mais moralista, em que a instituição sempre estaria predominando sobre o processo. Pareceria que nunca se poderia criticar o processo, porque o processo está vinculado à instituição. Essa instituição, para o pesquisador, por exemplo, teria um valor sagrado, então ele não poderia criticar os seus processos, porque isso o afetaria pessoalmente. Eu acho que isso já foi superado na pesquisa.

As pessoas conseguem separar os processos, separar aquilo que é da instituição, aquilo que é do nível do sagrado, aquilo que é do processo mesmo que está sendo analisado, e conseguem perceber aí a riqueza do fenômeno comunicacional que está se expressando naquilo que está sendo observado. A pesquisa avançou nesse sentido de perceber a Igreja institucional como algo diferente da “Igreja povo de Deus”, se quisermos chamar assim. Também para a Igreja isso foi mais enriquecedor, porque essas pesquisas vão contribuindo para os agentes mais diversos que lidam com a comunicação dentro da Igreja, para que tenham esses subsídios para pensar a própria prática da Igreja. Acho que a pesquisa tem enriquecido a própria instituição, quando ela é vista como instituição, podendo receber essa crítica e ser analisada a partir de suas práticas.

E as pesquisas também têm ampliado o leque de fenômenos escolhidos para serem observados. Já vemos uma pesquisa que toma o catolicismo como fenômeno religioso e como processo comunicacional. É o catolicismo que se expressa nas redes sociais digitais, por exemplo, um catolicismo difuso na sociedade, e não apenas o catolicismo “institucional”. A pesquisa vinculada não a objetos institucionais midiáticos, mas sim ao catolicismo como construto social, como experiência de vida, como elemento da cultura brasileira, e como as matrizes comunicacionais vão constituindo esse elemento da cultura que é o catolicismo.

Então, a instituição já perde um pouco de importância, e o que ganha importância é o fenômeno religioso e o processo comunicacional visto a partir da perspectiva e da experiência católicas. Como o catolicismo como tal vai sendo reconstruído nas várias mídias, mas também nesses processos mais contemporâneos que são as redes sociais digitais, os aplicativos, o uso da tecnologia no cotidiano das pessoas. Não mais uma perspectiva descendente, que parte da instituição e vê o que a instituição faz, mas sim um processo mais ascendente, que vê como o catolicismo está difuso na sociedade, e como isso vai transformando aquilo que a instituição considera como ela mesma. Quer dizer, a própria instituição vai mudando porque a sociedade vai mudando, e dentro da sociedade os católicos vão mudando. É esse processo – que é comunicacional e que é também muito mais rico – que a pesquisa vai olhar com mais ênfase nesses últimos anos. E isso também favorece o campo da Comunicação de um ponto de vista mais geral, porque, para quem lê essas pesquisas sobre religião a partir dos seus objetos, sejam eles os mais diversos, vai perceber nesse fenômeno religioso semelhanças ou características comuns, certas processualidades que podem se repetir e replicar nos outros campos sociais.

MRS: E o que essas novas formas de expressão do “sagrado” e do ser religioso, e o próprio fazer religião/espiritualidade da Igreja Católica dizem sobre uma instituição que detinha o poder de controle, sendo a religião predominante por muito tempo, e diga-se ultraconservadora?

Moisés Sbardelotto: É um processo que a Igreja ainda está digerindo, de certa forma. Cito o Carlos Scolari, pesquisador argentino e professor da Universitat Pompeu Fabra, em Barcelona, que diz que a revolução digital tem pouco mais do que 10 mil dias. Ele cita como marcos históricos desse processo o surgimento das interfaces gráficas dos computadores Macintosh, em 1984, e a web, o sistema WWW, em 1992.

Então, para uma instituição como a Igreja, que é bimilenar, acostumada a lidar com longos processos históricos, a dar passos muito lentos acompanhando os tempos, uma revolução da dimensão da revolução digital e todas essas novas práticas sociais que vieram com ela em poucas décadas provocam um abalo bastante grande. É um processo ao qual a Igreja ainda vai levar o seu tempo para poder dar respostas mais efetivas, mais eficazes, e poder se posicionar dentro desse “terremoto”.

De certo modo, isso abalou as estruturas sobre as quais a Igreja vinha fazendo as suas práticas. Essa reconstrução do sentido do ser católico, essas novas práticas sobre o sagrado não nascem “por causa” da internet, mas a internet é um dos fatores que catalisam um processo social que vinha crescendo e, com essa nova tecnologia, ganha um nível exponencial. Os processos ganham um dinamismo que talvez, sem a internet, não teriam. E isso leva a essa invenção das práticas sobre o sagrado, quer dizer, novas formas de espiritualidade, novas formas de relação com Deus, com a Igreja, com as comunidades. E por outro lado, junto com isso, uma nova expressão do sagrado por parte das pessoas comuns. O fiel percebe o sagrado graças a essa cultura midiática, mas, por outro lado, também expressa sua própria vivência e sua relação com o sagrado graças a essa cultura midiática.

Então, esses dois movimentos de perceber e expressar o sagrado muitas vezes acontecem à margem das instituições religiosas. Como, por exemplo, nas experiências que vão se dando nas redes sociais digitais. O sujeito vai encontrando e buscando o sagrado, e muitas vezes as respostas que ele encontra nos sistemas de busca são construídas por pessoas comuns, por grupos alternativos, que talvez façam referência a alguma instituição religiosa, mas não tenham vínculo oficial com ela. Não falam em nome dessa instituição. E essa pessoa vai poder construir a sua religiosidade a partir dessas várias fontes, que vão oferecer teologias próprias, espiritualidades próprias, experiências de comunidade próprias. Isso pode se distanciar daquilo que a própria instituição oferece, ou defende, ou sobre o qual tenta manter um certo controle.

É um desafio bastante grande para a Igreja lidar com isso, porque justamente as experiências vão tentando se desviar da instituição, vão se afastando dela, vão tentando construir coisas alternativas mesmo. Aquilo que as pessoas não encontram na instituição, elas vão encontrar ou vão construir e inventar nesses ambientes comunicacionais, nas redes sociais digitais etc. Com a internet, isso passa a ser muito mais facilitado. Então, a instituição também vai perdendo uma certa voz social, vai diminuindo o poder dessa sua voz, e quem vai ganhando espaço são esses sujeitos, esses interagentes, essas pessoas comuns que vão achando essas brechas, que a Igreja não consegue mais ocupar. E aí são oferecidas novas formas de religiosidade.

Os processos estão acontecendo aqui e agora, e, para uma Igreja que tem toda essa trajetória de milênios, vai custar bastante ainda a responder. O que a gente vê por parte da Santa Sé, no caso católico, são respostas ainda muito institucionais, burocráticas, do ponto de vista estratégico. “Estamos perdendo leitores, perdendo fiéis de dentro da Igreja, então precisamos dar uma resposta institucional efetiva para isso.” Então, ela muda todo o seu aparato comunicacional, muda o organograma interno da comunicação vaticana, troca a nomenclatura de uma determinada prática comunicacional, gera uma nova secretaria, enfim, coisas de um nível ainda muito burocrático. Custa para ela mudar a própria cultura comunicacional como Igreja.

O Papa Francisco, como pessoa e como pontífice, do ponto de vista comunicacional, está rompendo muitas barreiras, inovando em muitas coisas, mas, na prática do dia a dia da Igreja como um todo, nas paróquias e dioceses, nas estruturas mais locais, a Igreja ainda custa muito a responder à altura dos desafios de hoje, do ponto de vista da comunicação. Ela ainda está pautada por essa perspectiva “institucionalista”, estrategista, burocrática. A cultura interna, as relações interpessoais e entre grupos, a formação de padres e religiosos, a catequese, a liturgia, os locais de culto, as missas, enfim, toda essa outra realidade do cotidiano da Igreja, dos processos eclesiais entendidos como processos comunicacionais, ainda parece muito distante da questão digital, ou mesmo da questão comunicacional hoje.

Houve tentativas de resposta também em outro nível, mais tecnicista, de investimento em tecnologias, em aparatos, maquinários sofisticados, mas que tiveram pouco efeito, porque o que está em jogo não é de ordem tecnológica. Grande parte das linguagens, do imaginário, das simbólicas que são usadas na Igreja vêm ainda da Idade Média. Então, há um choque cultural de linguagens, de símbolos e de experiências comunicacionais que a Igreja ainda não consegue responder à altura. Talvez por esse peso histórico que ela tem, que faz com que ela responda de forma muito lenta.

MRS: E como você vê isso dentro da Igreja, tendo estado no centro dela, o Vaticano, e podendo conversar com as pessoas responsáveis pelas estratégias comunicacionais?

Moisés Sbardelotto: O tempo em que eu fiquei lá, que foi de 2014 a 2015, no doutorado sanduíche na Università di Roma “La Sapienza”, foi um período de transição dentro da estrutura interna da comunicação vaticana. No período em que eu estive lá, ainda existia uma estrutura mais voltada para a missão e para pastoral da Igreja, o Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, que era então o órgão máximo da comunicação da Igreja. Seu prefeito era o arcebispo Claudio Maria Celli, e o secretário era o bispo Paul Tighe, ambos entrevistados na pesquisa. E as várias mídias da Santa Sé, como a Rádio Vaticano, o Centro Televisivo, o jornal L’Osservatore Romano, enfim, as várias mídias vaticanas, embora independentes, se encontravam dentro desse guarda-chuva que era o Pontifício Conselho. Porém, esse órgão era mais de reflexão, de estudo, de motivação, de incentivo para a Igreja em geral voltar o seu olhar para a comunicação. Trazia perspectivas novas e depois as entregava para a Igreja no mundo inteiro, que buscava dar suas respostas dentro das suas experiências locais.

Mas, por conta de uma série de questões internas e externas – o atual contexto da comunicação, o processo de digitalização, mas também as dificuldades financeiras e de pessoal –, se resolveu fazer uma reforma da estrutura midiática do Vaticano. Então, caiu toda aquela estrutura anterior e surgiu esse órgão novo que é a Secretaria para a Comunicação. Mudou todo o organograma, a presidência, toda a estrutura. E o objetivo dessa secretaria é dar respostas concretas, empíricas, uma certa “eficácia” para a comunicação eclesiástica institucional.

Em uma de suas primeiras entrevistas, o ex-prefeito dessa secretaria, Mons. Dario Viganò, disse que queria trazer o “modelo Disney” para a Igreja. Não só do ponto de vista da estrutura, mas também do ponto de vista de uma comunicação que trouxesse resultados, de maximização dos processos, que fosse uma comunicação “eficaz”. Isso transforma completamente aquilo que vinha sendo feito pelo Pontifício Conselho. Essa secretaria vai tentando reformular toda a estrutura da comunicação vaticana, e as mídias da Santa Sé são aglutinadas em um produto midiático novo, que é o Vatican News. Trata-se de um grande agregador de conteúdos, e dentro dele tem vídeos, áudios, fotos, textos, sem trazer as marcas históricas de cada mídia vaticana, como a Rádio Vaticano, ou o L’Osservatore Romano etc., instituições de grande peso institucional nas últimas décadas, senão séculos. Esse novo produto vai ser apenas e principalmente digital. Tudo isso em meio a muitas tensões internas, como as entrevistas da pesquisa também apontam, porque a comunicação do Vaticano tem uma cultura diferenciada, são órgãos que trazem toda uma bagagem histórica, e agora, em poucos anos, o desafio era fazer uma reforma completa dessas estruturas.

No período em que eu estive lá, também percebi que os escritórios de comunicação eram bem isolados, com pouca comunicação interna entre os órgãos de comunicação do Vaticano. Por outro lado, havia um certo abismo entre os que pensavam a comunicação dentro da Igreja e aqueles que efetivamente a colocavam em prática no dia a dia. As entrevistas para a pesquisa, em geral, foram feitas com esses dois níveis do processo interno vaticano. Por um lado, quem pensava a comunicação fazia isso de um ponto de vista amplo, “pastoral”, ou seja, a dimensão socioeclesial, a relação entre a Igreja e as culturas. Mas o processo para que isso chegasse à prática era muito tenso, havia um tipo de turbulência ali, porque, na prática, se via uma comunicação mais “objetivista”, que perdia de vista aquela perspectiva mais ampla. Via-se profissionais do dia a dia que conheciam superficialmente a vida e os documentos da Igreja, pessoas que, por estarem muito envolvidas com a prática cotidiana, não acompanhavam todo aquele debate, toda a discussão.

Com a reforma, a instituição acabou perdendo um pouco desse nível reflexivo, tanto é que, dentro da Secretaria para a Comunicação, as questões pastorais foram “reduzidas” a uma subsecretaria. Quer dizer, a dimensão pastoral da comunicação acabou ficando em segundo plano, quando antes era o que movia a comunicação da Igreja. Tudo isso é um embate interno, que não se resolveu ainda. No livro, isso aparece nas respostas que são dadas nas entrevistas, o desafio de responder, nos processos de comunicação concretos, a partir daquilo que a Igreja pensa sobre a comunicação. É um pensamento muito avançado, mas com respostas empíricas, muitas vezes, limitadas.

MRS: Como você avalia, pensando em sua pesquisa, os sentidos postos em rede a respeito dessa espiritualidade, do ser católico diante de um sentido sacro, doutrinário e rígido adotado desde sempre pela Igreja?

Moisés Sbardelotto: Uma das coisas que eu aponto no livro (E o Verbo Se fez rede) é que aquilo que a Igreja Católica vem vivendo hoje pode ser relacionado, de certo modo, com aquilo que foi vivido por ela na Reforma Protestante. Só que um patamar ainda mais complexo. Porque um desafio que a sociedade foi levantando para a Igreja ao longo da história é o de tentar acessar as práticas da instituição, quando, muitas vezes, a Igreja era muito hermética e oferecia em “migalhas”, em “conta-gotas” a sua teologia, o sentido dos seus ritos às pessoas comuns. Quem tinha acesso a isso eram os religiosos, principalmente os clérigos.

E o que o processo social, ao longo da história, foi tentando fazer foi justamente criar algumas brechas para se ter acesso a isso. Ter a acesso a Bíblia, por exemplo, foi um dos grandes desafios que a Reforma Protestante levantou para a Igreja institucional da época. Era uma Igreja muito voltada para si mesma, com ritos cada vez mais obscuros para a população em geral, que não entendia o sentido de todos aqueles símbolos, discursos, vestimentas, cores, gestos etc. Então a sociedade em geral vai criando espaços para acessar isso, ou então pessoas de dentro da Igreja, que não aguentam mais esse ambiente fechado, tentam também sair e trazer um debate mais aberto, reflexões alternativas.

O que a internet faz é catalisar esses processos de tensão internos da Igreja, exponenciar esses processos que são uma constante na história, mas com um alcance e uma velocidade muito maiores do que se não existissem esses circuitos comunicacionais. O que eu vejo são grupos católicos que vinham se sentindo sufocados, vinham perdendo seus espaços e sua voz, e os ambientes comunicacionais digitais vão oferecer espaços para dar vazão a isso. A Igreja institucional, muitas vezes, fechava as portas, quando tentava silenciar ou calar esses grupos, essas pessoas. O que se vê nas redes sociais digitais, nas páginas da internet, nos blogs são esses grupos que se sentiam silenciados, que não encontravam espaços dentro da instituição, e que vão gerando esses espaços fora dela, e de modo muito mais público e visível, por conta das conexões em rede.

Isso também vai gerando um grande desafio para a Igreja, como na questão do controle, de se ter um certo domínio sobre aquilo que pode ser considerado ou não como canônico, como católico, como doutrinal. Tudo isso está em jogo. Esses grupos estão tentando falar o catolicismo em novas linguagens, e a Igreja institucional, por outro lado, muitas vezes, tentando resguardar aquilo que ela já possui como tradição. É claro que, neste pontificado do Papa Francisco, tudo isso está em ebulição. Quer dizer, qual é o sentido de tradição? O que definimos como tradição? O que a Igreja considera como tradição? O que significa doutrina? O que significa a experiência católica? O Papa Francisco tirou o “pó” de cima dessas palavras. Quer dizer, doutrina não é meramente aquilo que está escrito nos livros do passado. Doutrina vai muito além disso. Tradição não é só aquilo que a Igreja sempre fez. A Igreja pode inventar coisas novas, que podem entrar na Tradição da Igreja, mesmo que nunca tenham sido feitas. O Papa Francisco traz essa perspectiva de interpretar esses grandes conceitos a partir de um novo olhar, que, de certa forma, responde também a certas demandas desses grupos que foram surgindo na internet.

Esse pontificado também foi um divisor de águas para o que podemos ver agora nas páginas de internet de alguns grupos católicos, que é um movimento muitas vezes reacionário. Quem mais tem voz na internet, muitas vezes, são esses grupos ultrarradicais, ultratradicionalistas, porque são eles que se veem, digamos, em risco. Quando vivemos uma Igreja um pouco mais aberta, dialógica, em um mundo em mudança, então são esses grupos, que se consideravam donos da Igreja, que não querem perder esse poder, que não querem mais se sentir fora dessa Igreja que está “moderninha”. São esses grupos que vão ganhando um certo espaço midiático maior e gerando tensões muito fortes dentro do ambiente digital. De uma forma muito mais agressiva, muito mais contraditória com a própria tradição católica, ou com a experiência cristã, ou com os valores cristãos, de certo modo.

Acredito que todo o processo comunicacional que estamos vivendo, nesse sentido da revolução digital, são formas que a sociedade vai encontrando de reconstruir o catolicismo a partir dos desafios contemporâneos. Uma sociedade aberta, que vai vendo que a Igreja ou está ficando para trás, ou não está respondendo à altura das questões de hoje. Indivíduos e grupos católicos ou não católicos vão encontrando espaços para poder colocar isso em jogo, em debate na sociedade. Então, há o desafio do lado da instituição, de como manter o seu controle e poder discursivos sobre o que é o catolicismo, e, por outro lado, da sociedade, em que as pessoas estão cada vez mais “autonomizadas” com os processos de comunicação. Assim, vão tentando também construir o seu próprio poder-dizer e poder-fazer sobre a sua religiosidade, sobre a sua espiritualidade, dizendo de certo modo que a instituição não tem domínio sobre o fenômeno religioso. O mistério e o sagrado vão muito além da instituição religiosa. É esse choque entre uma perspectiva mais aberta da sociedade e uma perspectiva um pouco mais fechada da instituição que está em jogo hoje, de modo muito mais evidente.

E, no meio disso, tem um grande processo comunicacional, porque tudo isso está acontecendo nas redes sociais digitais, nos debates da grande mídia. Tudo isso é mais visível do que em décadas atrás, ou então na Idade Média, em que isso ficava restrito às classes mais altas e instruídas da sociedade. Hoje, qualquer um pode ter acesso a um celular, acessar sites que falam sobre esses temas, e isso vai gerando uma repercussão tanto na base da instituição, quanto na sociedade em geral. O que eu digo no livro é que o que está em jogo hoje são religiosidades em reconstrução, o catolicismo em reconstrução, e reconstrução comunicacional, porque hoje a Igreja já não consegue controlar esses processos. Hoje, com sites, blogs, redes sociais digitais e aplicativos, qualquer um pode falar ou narrar o catolicismo. Esse é um processo que a Igreja está vivendo agora, está no “olho do furacão” de tudo isso. E para ela dar uma resposta que seja institucional vai levar ainda um certo tempo. Mas, do ponto de vista comunicacional, são processos muito ricos, porque são tensões e desdobramentos em que vão emergindo novos sentidos, novas relações e novos construtos comunicacionais sobre o fenômeno religioso.

MRS: Como você pode explicar os movimentos de tentativa de resgate/captura de fiéis da Igreja Católica, comparada com as igrejas evangélicas em termos comunicacionais?

Moisés Sbardelotto: O que se vê é aquilo que se chama, em nível de pesquisa, de “fidelização”. E isso acabou sendo assumido também na Igreja Católica, pois até então era mais forte nas Igrejas pentecostais. Na Igreja Católica, isso assumiu um viés muito mercantilista, ou seja, é uma mercantilização que se dá via consumo, que é muito concreto nos objetos à venda e nas campanhas de arrecadação de dinheiro para manter ou construir templos etc. Então, há uma fidelização que tem um duplo sentido. Para o fiel, é dito: “Você pode assumir seu papel de fiel e de cristão na Igreja porque está contribuindo financeiramente com a nossa obra”. Do ponto de vista das instituições e da mídia religiosas, essa fidelização busca captar recursos dos fiéis. Então, no fundo, o que acontece, às vezes, é uma disputa comercial bastante “antievangélica”, no sentido dos Evangelhos, quer dizer, anticristã. Porque se trata de uma disputa comercial, mercantil pura e simplesmente. Aproveita-se um imaginário simbólico e uma certa base doutrinária para mostrar que isso é ser cristão. Mas o que está em jogo é uma disputa de unhas e dentes para ver quem tem o controle midiático, para ver quem consegue se sustentar como instituição etc.

O que chama atenção é a necessidade, por exemplo, de se ter dezenas de canais de TV católicos abertos no Brasil. Será que a necessidade brasileira é tão grande para haver tantas redes católicas de TV? O que se manifesta aí, de certo modo, é essa disputa entre grupos católicos internos, cada um querendo ter um poder midiático próprio e traduzir o catolicismo a partir do seu ponto de vista no panorama brasileiro. E, para se manter, vai depender dessa captação de recursos, que cada vez se torna mais selvagem.

Além dessa disputa, existe também a concorrência com as Igrejas evangélicas, que também vão ganhando cada vez mais espaço e mais poder, inclusive políticos, com deputados, vereadores e até partidos próprios. E a Igreja Católica está se vendo em segundo plano no cenário nacional, o que reforça essa disputa para que a Igreja tenha mais espaços, e por sua vez, entre os próprios grupos católicos, para ver qual vai “levar a melhor” no panorama eclesial brasileiro.

Isso é bastante complicado, se pensarmos a comunicação do ponto de vista mais pastoral. O que tudo isso comunica sobre a própria Igreja? Essas disputas e essa fidelização pelo consumo, esse barateamento ou liquidação dos símbolos católicos que se transformam em meros objetos de consumo… Essa é a pergunta mais grave para a Igreja se fazer: colocar na balança qual o peso disso, o que isso traz como consequência a longo prazo para a Igreja no sentido mais amplo, não só no sentido institucional, para a Igreja como “povo de Deus”, como presença de um certo estilo de vida na sociedade. Até que ponto a venda da sua tradição e de seus valores para a sociedade em geral, via mídias, corresponde àquilo que a Igreja tem como tradição mais nobre, que vem dos Evangelhos e da própria pessoa de Jesus, da experiência cristã?

Se formos resgatar nos Evangelhos, Jesus é contrário aos vendilhões do templo, porque justamente estão barateando a experiência religiosa da época, estão liquidando-a – tanto no sentido de facilitar a compra, como no sentido de acabar com o sentido sagrado presente naqueles símbolos e ritos. Será que a Igreja Católica hoje, com essa disputa midiática, não está fazendo a mesma coisa que aqueles vendilhões? É uma autocrítica que precisaria ser feita. Até que ponto isso é condizente com os Evangelhos e com a tradição cristã?

Isso não significa que a Igreja deva se voltar apenas à prática concreta e esquecer o midiático. Mas é preciso que o sistema comunicacional da instituição possa ser constantemente autocriticado, para não cair em uma dinâmica de autoexposição e euforia no campo midiático, e pensar que a solução dos problemas eclesiais vai se dar via mídias. São problemas e desafios de ordem diferentes. Os desafios mais profundos não são de ordem midiática, são sim de ordem comunicacional, mas entendendo a comunicação de um ponto de vista mais amplo, envolvendo desde a catequese, a formação, a experiência de comunidade, a “transmissão da fé”. É tudo isso, que vai muito além das mídias em geral.

MRS: Como você entende os novos processos comunicacionais vindo à tona a partir do Papa Francisco? E como você percebe que a Igreja vem se colocando frente a isso?

Moisés Sbardelotto: Na minha opinião, o Papa Francisco, já na sua primeira aparição, deu o sentido comunicacional daquilo que viria no papado. Porque, naquele momento, quando ele apareceu ao mundo em 2013, havia toda uma simbólica: as vestes, uma batina branca, a cruz de prata, a primeira frase – “Boa noite” –, e não qualquer outra coisa mais formal ou hierárquica… E, nesse breve discurso, ele já falou que a Igreja iria começar “um caminho entre bispo e povo”. Ele não falou de si mesmo como Sumo Pontífice, ou Vigário de Cristo. Quer dizer, o próprio conceito que ele usa é o “caminho entre bispo e povo”. Ele se vê como bispo de Roma. E, no fim do discurso, ele pede, antes de qualquer coisa, que o povo reze pelo seu bispo. Então, esse gesto comunicacional de dar a ênfase ao interlocutor, ao “receptor”, explicita que esse processo não é só do papa. O povo comunica algo para o papa e algo para o mundo inteiro naquele gesto.

Esses primeiros minutos já indicam que é um papa que entende muito da complexidade da comunicação hoje. Não é um papa que vai buscar uma comunicação unidirecional e nem respostas lineares. Ele vai buscar o contato, redes, conexões etc. Na prática dele, ele vai buscar saídas inovadoras nesse sentido, e esse gesto inicial já mostrou isso. Ele vai se afastar de uma imagem de papa muito nobre, imperial, e vai buscar falar na linguagem das pessoas que estão na frente dele e, por fim, colocar o povo como sujeito daquela comunicação. Isso desloca grande parte da experiência que o mundo tinha com os papas anteriores e mostra um papa que entende de uma comunicação popular, complexa e do cotidiano, e não uma comunicação institucional, burocrática ou distante.

Já naqueles primeiros gestos, ele mostrou também que tinha uma coisa nova no ar e que foi se revelando ao longo do papado, com palavras e gestos. Eu acho que o interessante do papado de Francisco é essa relação entre palavra e gesto, porque o que se tinha antes eram discursos muito belos, cartas, documentos, homilias muito bonitas e profundas teologicamente, mas, depois, poucos gestos que correspondessem àquilo, ou então gestos muito teatrais, que chamavam a atenção por serem inovadores, mas que, no discurso e na teologia por trás daquele gesto, revelavam um paradoxo, um quê de conservadorismo ou até de contradição. Então, parecia que a Igreja vivia uma esquizofrenia comunicacional.

O que o Papa Francisco de certo modo consegue fazer é conjugar essas duas coisas, consegue unir as duas coisas, o gesto e a palavra, na sua pessoa, sendo coerente com aquilo que diz e faz. Essa é a maior transformação que ele consegue fazer, e ele vai chamar a atenção da instituição para isso. Ele vai dizer: “Não adianta eu mudar todo o pessoal, fazer uma revolução da burocracia vaticana, se cada um não mudar o seu dia a dia, os seus gestos e estilo de vida”. Quer dizer, a instituição só vai ter sentido, só vai reconhecida pela sociedade quando conseguir conjugar a palavra e os gestos, ou seja, fazer corresponder as duas coisas. Porque a sociedade de hoje é muito mais crítica, tem muito mais acesso à informação e se dá conta de que essa instituição está sendo incoerente. O papa chama atenção para isso.

Essa ideia de reforma é muito forte no papado de Francisco. Ele mesmo diz que a reforma só vai ser eficaz quando não ficarmos apenas no discurso, ou então só na mudança estrutural da Igreja. As duas coisas têm que caminhar juntas. O Papa Francisco tem muito a questão do toque, do abraço, vai além da razão. Ele está buscando essa atração que passa pelos afetos. Passa por uma comunicação mais humana, para além de qualquer teorização sobre a fé ou a doutrina. São esses vários elementos que fazem com que o Papa Francisco seja, pelo menos, bem reconhecido pela sociedade. Percebe-se que tem alguém que está levando a sério aquilo que prega, que está colocando em prática aquilo que diz. E vemos isso tanto do ponto de vista geopolítico, como do ponto de vista das relações sociais. É um elemento cada vez mais em escassez, como a incoerência de vida entre as grandes lideranças mundiais. Então, quando um líder da importância do Papa Francisco consegue manifestar isso, ele se transforma em foco de atenção no mundo inteiro.

MRS: Olhando a partir dos tensionamentos envolvendo as heresias comunicacionais, que você aponta no livro, como você considera esses tensionamentos para a Igreja? Você acredita que isso possa suscitar uma reflexão por parte da Igreja?

Moisés Sbardelotto: Para entender o que eu chamo de “heresia comunicacional” é quase preciso deixar de lado o que se entende por heresia no sentido teológico, como algo que contraria a doutrina, que se desvia do canônico. Heresia comunicacional aqui vem de uma ideia que eu encontrei no Peter Berger, quando ele fala que a sociedade de hoje é desafiada a fazer escolhas, por estar marcada por uma maior pluralização e publicização de seus processos. Historicamente, em gerações passadas, praticamente, a vida estava definida pelo destino, por poucas escolhas, ou por escolhas já definidas, em culturas em que você precisava simplesmente seguir aquilo que já estava destinado pela própria família, pelo próprio clã.

E hoje teríamos sociedades que estão fundamentadas na escolha, na necessidade de decidir. Quer dizer, aumentou o número de escolhas do ponto de vista da pessoa, do ponto de vista social, dos nossos gostos, do vestuário, das profissões, da alimentação etc., inclusive da religião. Não somos mais católicos ou evangélicos ou de religiões de matriz africana por tradição. Muitas vezes, as pessoas mudam porque fazem escolhas, porque aumentou o seu campo de escolhas.

Eu percebo algo semelhante no processo comunicacional. Com a disseminação das redes sociais digitais, com a ampliação dos contatos e das informações, com a velocidade desses contatos e dessas informações, em comparação com o cenário midiático dos anos 1980 e 1990, hoje nós teríamos uma necessidade de escolha também muito maior. A oferta de sentidos, de fontes de informação, as possibilidades de relação são muito maiores do que 20 anos atrás, quando tínhamos mídias bem especificas como a TV, o rádio, o jornal, o telefone para as relações pessoais. Hoje, temos uma infinidade de possibilidades de escolha.

Então, a heresia, segundo Peter Berger, é: ele resgata a etimologia da própria palavra, que é escolha. O que eu quis chamar de heresia comunicacional é isto: o aumento do número de escolhas comunicacionais e também a necessidade de as pessoas fazerem escolhas comunicacionais em suas inter-relações em rede. Cada um precisa fazer escolhas constantes do que acessar, de qual link clicar, de como se posicionar, do que falar, de como falar, de curtir ou não curtir, de comentar ou não comentar, da forma de fazer isso. São várias escolhas que as pessoas precisam ir fazendo para manter sua comunicação e estar presente nesses ambientes comunicacionais. E cada escolha de “curtir”, comentar, compartilhar ou retuitar, potencialmente, é também uma forma de introduzir a divergência, a dimensão polêmica, o debate crítico, a turbulência, a instabilidade, o desvio.

Se os construtos sociais, na chamada “sociedade dos meios”, dependiam quase exclusivamente daquilo que as empresas midiáticas traziam à tona como “destino” comunicacional, o cenário contemporâneo mostra que a necessidade de escolher e de decidir midiaticamente cresceu exponencialmente por parte de cada pessoa. Temos um acesso facilitado a uma enorme multiplicidade de sentidos sociais sobre a realidade e também a diversas possibilidades de construção de novos sentidos em rede, o que exige escolha, demanda decisão, favorecendo, então, as heresias comunicacionais.

O que essas heresias comunicacionais trazem de desafio para a Igreja é justamente esse sentido de expandir as fronteiras eclesiais. Porque, nas redes sociais digitais, na comunicação digital, as pessoas estão constantemente construindo sentido, por exemplo, sobre a teologia católica, sobre o que o papa fez ou deixou de fazer, sobre experiências de fé individuais e coletivas etc. Coisas que antes talvez ficariam restritas a uma conversa de bar, ao núcleo familiar, dentro dos grupos de Igreja, ou seja, restritas a grupos mais isolados e dispersos. Mas, hoje, a conversa de bar, o núcleo familiar, o grupo de Igreja, tudo isso já está em inter-relação nas redes. Quer dizer, as redes sociais digitais, o ambiente digital começa a ser um polo agregador para esses grupos.

Hoje, o que as redes sociais digitais fazem é possibilitar esses vários contatos, essas várias possibilidades de heresia, no sentido de que as pessoas precisam se posicionar nesses ambientes, saber o que fazer diante dos sentidos que estão aí em jogo e de que, ao fazer o que fizerem, estarão gerando novas possibilidades e desvios de sentido. A noção de heresia comunicacional ajuda a perceber os processos dinâmicos, indeterminados e incontroláveis de desenvolvimento das interações e de construção de sentido, vistos não como “ruído”, mas como princípio criativo e força gerativa da própria comunicação.

Tudo isso vai desdobrando o catolicismo e de certa forma pode ser recebido pela Igreja-instituição como crítica e questionamento em relação a coisas com as quais a instituição talvez nem estivesse preocupada. Nesses ambientes, começam a surgir questões e tensões que desafiam a Igreja. Isto é, o institucional vai emergindo e também sendo reconfigurado pelo não institucional, pelo “social”, em sentido amplo. De um lado negativo, as heresias comunicacionais podem sair fora do controle da instituição por conta das conexões entre grupos e pessoas os mais diversos, como no caso das chamadas “fake news”, da difamação, intolerância, polarização, discriminação intracatólica em rede. Aliás, aqui é preciso destacar que o Papa Francisco, em uma exortação apostólica recente, um documento oficial de alto nível, intitulado Gaudete e exsultate (“Alegrai-vos e exultai”), sobre uma temática distante das questões comunicacionais como a santidade, chega a afirmar claramente que os cristãos também podem fazer parte de “redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital”. Mesmo nas mídias católicas, denuncia o papa “é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia” (n. 115). Tudo isso também é decorrência e “sintoma” de heresias comunicacionais.

Mas, de um lado positivo, por conta também de suas heresias comunicacionais, certos grupos católicos minoritários, que se sentem silenciados ou ignorados pela instituição ou pela cultura católica, também vão chamando a atenção da Igreja, como o caso dos católicos LGBT em rede, que eu analiso no livro. Por conta disso, a instituição precisa responder a esses fenômenos e a se posicionar sobre eles, e isso vai gerando tensões e debates, que levam a Igreja a se “mexer” publicamente diante desse tipo de fenômeno.

O caos, a turbulência, o desvio provocado pelos interagentes em rede podem fomentar, então, uma transformação “evolutiva”, não necessariamente “boa” do ponto de vista moral, mas sim de outro nível, das crenças e práticas católicas, talvez até “forçando” positivamente uma abertura sistêmica da Igreja em relação ao pluralismo religioso e cultural da vida social. As escolhas e as decisões tomadas nas bifurcações dos processos comunicacionais em rede também geram “o” sentido daquilo que é o “religioso” e das religiosidades hoje.

E o maior desafio é este: uma Igreja que se depara com uma sociedade, com uma cultura que tem o poder de escolher e que tem o poder de comunicar sobre o catolicismo, que tem uma voz social sobre o catolicismo. Essa já não é mais uma prerrogativa apenas da instituição. Hoje, pessoas comuns podem falar sobre o catolicismo para o mundo inteiro graças às conexões digitais. Isso é o que é mais desafiador para a instituição, mas também mais rico para o catolicismo, porque vai trazendo à tona outras expressões católicas. E o que vai dar sentido para todo esse “caos” comunicacional é a própria pessoa, que se sente desafiada a tomar posição diante da realidade, inclusive por meio de heresias comunicacionais, e também a relação entre pessoas, o debate, o encontro e o confronto sadio entre católicos em rede e a própria instituição. Como eu afirmo no livro, se a comunicação pode gerar “comunhão”, tão importante para o catolicismo, ela só poderá se dar, em rede e fora dela, como “comunhão nas diferenças”.

TEXTOS CITADOS NA ENTREVISTA:

  • SBARDELOTTO, M.. E o Verbo se fez rede: religiosidades em reconstrução no ambiente digital. 1. ed. São Paulo: Paulinas, 2017. v. 1. 397p
  • SBARDELOTTO, M.. E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet. 1. ed. Aparecida: Editora Santuário, 2012. 367p.

PARA CITAR ESTA ENTREVISTA

SBARDELOTTO, M.. Processos comunicacionais da Igreja Católica: um panorama entre Brasil e Vaticano – Entrevista com Moisés Sbardelotto [05/09/2018]. Mídia, Religião e Sociedade (site). Entrevista concedida a Tatiane Milani. Disponível em: https://midiareligiaoesociedade.com.br/2018/09/05/processos-comunicacionais-da-igreja-catolica-um-panorama-entre-brasil-e-vaticano-entrevista-com-moises-sbardelotto/  . Acesso:

SOBRE O AUTOR

Doutor e mestre em Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). É autor de “E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet”. É colaborador do Instituto Humanitas Unisinos (IHU) e membro da Comissão Especial para o Diretório de Comunicação para a Igreja no Brasil, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). De 2008 a 2012, coordenou o escritório brasileiro da Fundação Ética Mundial (Stiftung Weltethos), fundada pelo teólogo suíço-alemão Hans Küng. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase na interface mídia e religião, com foco em questões que envolvem religião e internet.

Confira <<<textos de Moisés Sbardelotto>>> publicados no Mídia, Religião e Sociedade.

SOBRE A ENTREVISTADORA

Tatiane Milani é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação pela Unisinos e graduada em Comunicação (Jornalismo) pela UFSM campus de Frederico Westphalen. Desenvolve pesquisas com ênfase em temas como: mídia e religião, Igreja Católica, Papa Francisco, midiatização, circulação e imagem. É colaboradora permanente do Mídia, Religião e Sociedade.

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