Entrevista publicada primeiramente pela IHU-Online no dia 19 de outubro de 2007.
“A midiatização está, talvez, configurando a possibilidade da busca de uma visão unificada da sociedade. A estruturação de uma visão totalizante não mais se dá mediante a reflexão e o pensamento, mas através da prática glo(tri)balizante”, é o que afirma Padre Pedro Gilberto Gomes em entrevista, que segue, à IHU On-Line, feita por e-mail, sobre seu artigo “O processo de midiatização da sociedade”. No texto, Pe. Pedro analisa este processo a partir da relação entre mídia e religião, que é seu objeto de pesquisa, fazendo referência às teorias de Mcluhan e Teillhard de Chardin. “Aceitar a midiatização como um novo modo de ser no mundo põe-nos numa nova ambiência que, mesmo que tenha fundamento no processo até agora desenvolvido, significa um salto qualitativo no modo de construir sentido social e pessoal”, afirma Pe. Pedro.
Pedro Gilberto Gomes, padre jesuíta, é formado em Filosofia, pela PUCRS e em teologia pelo Colégio Máximo Cristo Rei-Unisinos. Ele tem especialização em Teologia, pela PUC de Santiago, no Chile. Ele é mestre e doutor em Comunicação, pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor e pesquisador do PPG em Comunicação e pró-reitor acadêmico da Unisinos. É autor de diversas obras, tais como Televisão, escola e juventude (Porto Alegre: Mediação, 2001); Tópicos de Teoria da Comunicação. Processos midiáticos em debate (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004); eFilosofia e ética da comunicação na midiatização da sociedade (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006).
Eis a entrevista.
IHU On-Line – O senhor fala, no artigo”O processo de midiatização da sociedade”, que está surgindo um bios-virtual representado pela midiatização da sociedade. De que forma a Igreja não acompanhou tal fenômeno?
Pedro Gilberto Gomes – As Igrejas em geral, e a Igreja Católica em particular, têm uma visão muito clara de sua missão: o anúncio da Boa Notícia de Jesus Cristo a todos os povos. Para cumprir essa missão, lançam mão de todos os instrumentos lícitos. Como a pregação é o fundamental, tudo o mais está a ela subordinado. No caso moderno, o importante é utilizar todos os instrumentos para fazer chegar a voz da Igreja a todos os rincões do mundo. Desse modo, à medida que os meios de comunicação foram se desenvolvendo, a Igreja foi se apropriando desses dispositivos tecnológicos como extensões de sua voz, imagem e ação.
Portanto, a Igreja acompanhou o desenvolvimento tecnológico. Hoje, rádio, televisão, internet, sites, estão presentes na vida da Igreja, desde a mais humilde paróquia até o Vaticano. No Brasil, a Igreja Católica, em termos de televisão, possui quatro redes nacionais, por exemplo. Sua rede de emissoras de rádio é considerável. A telemática, o satélite, os computadores estão integrando todos os níveis da comunidade eclesial. Esse não é o problema. O que a Igreja não acompanhou foi a reflexão sobre esse fenômeno que transcende os meros dispositivos tecnológicos e aponta para a constituição de uma nova ambiência da sociedade. A Igreja não discute as conseqüências para ela do uso indiscriminado da mídia como se essa fosse neutra. Existem leis e processos que distinguem, substancialmente, o espaço religioso do espaço midiático. O problema não é o que a religião faz com a mídia, mas que tipo de religião está emergindo da mídia. A Igreja não se deu conta de que uma nova ambiência está surgindo e colocando-lhe questões cruciais nesse início de milênio.
IHU On-Line – A tecnocultura pode, de certa forma, estar fragmentando a informação, uma vez que as pessoas acessam, ao mesmo tempo, inúmeras, notícias, ouvem música, assistem a um vídeo e postam seus comentários em blogs e afins?
Pedro Gilberto Gomes – Não diria assim. A questão da fragmentação da informação não está no acesso simultâneo de vários instrumentos. Na televisão, por exemplo, existem pessoas que se dão muito bem com o zapping, sem, com isso, perder o fio da meada. O que a tecnocultura está ocasionando é uma mudança no modelo mental das pessoas. Isso é mais patente nas crianças e adolescentes. Em certa medida, a fragmentação está relacionada com uma posição política e de poder sobre a informação. Nesse particular, a diversificação dos dispositivos tecnológicos de comunicação favorece o acesso plural à informação.
IHU On-Line – Muniz Sodré afirma que antes da midiatização da sociedade só Deus tinha o poder imediato, global e instantâneo. De alguma forma, a mídia dá “poder” às pessoas e as afasta da sua comunidade, da sua Igreja, ou seja, daquilo que antes era o seu emissor de informação?
Pedro Gilberto Gomes – Não compartilho com essa idéia, muito embora reconheça que ela está presente no imaginário de muitos membros da Igreja. Entretanto, quem assume tal posição demonstra estar ainda na antiga ambiência e não semantiza corretamente a realidade contemporânea. A sua gramática não acompanhou a virada do milênio.
IHU On-Line – Com o avanço tecnológico em expansão rápida e quase inalcançável, como o senhor definiria, hoje, o processo de midiatização da sociedade?
Pedro Gilberto Gomes – Os dispositivos tecnológicos, tão importantes, são apenas uma pequena parte, a ponta visível do iceberg, de um novo mundo estruturado pelo processo de midiatização da sociedade. Estamos vivendo hoje uma mudança de época, um câmbio epocal, uma nova inflexão, com a criação de um bios midiático que toca profundamente o tecido social. Surge uma nova ecologia comunicacional (1). É um bios virtual. Entendo que muito mais que uma tecno-interação, está surgindo um novo modo de ser no mundo representado pela midiatização da sociedade.
Fazendo referência ao pensamento de Marshall McLuhan (2), que divide a história da humanidade como um processo que parte da tribalização até a retribalização, passando pela destribalização (3), podemos dizer que a midiatização nos coloca numa outra galáxia que supera a chamada Aldeia Global. É um processo mais avançado do que uma simples retribalização.A Galáxia midiática (ou midiatizada) cria o fenômeno de uma glo(tri)balização.
Se avançarmos e ousarmos um pouco mais na reflexão, podemos afirmar que a midiatização está, talvez, configurando a possibilidade da busca de uma visão unificada da sociedade. A estruturação de uma visão totalizante não mais se dá mediante a reflexão e o pensamento, mas através da prática glo(tri)balizante.
IHU On-Line – Como Teilhard de Chardin e Marshall Mcluhan se relacionam para que possamos entender este processo de midiatização da sociedade contemporâneo?
Pedro Gilberto Gomes – De fato, sobre o processo de unificação, resultado da midiatização da sociedade, nós nos valemos de alguns pensamentos buscados em Teilhard de Chardin (4). Este pensador francês postula um processo de unificação da humanidade. Para ele, a história é um contínuo processo de unificação rumo à planetização da sociedade.
É possível encontrar pontos do pensamento de Teilhard de Chardin que o colocam na base das idéias de Marshall McLuhan, outro pensador seminal para se compreender o que se passa no mundo hoje. Tom Wolfe (5), falando deMcLuhan, diz: “Aqui vemos a sombra de uma intrigante figura que influenciou McLuhan tanto quanto Harold Innis, mas a quem ele nunca se referiu de maneira explícita: Pierre Teilhard de Chardin”.
Explicitando algo do pensamento do jesuíta francês, afirma que, para ele, Teilhard, “Deus estava dirigindo, nesse exato momento, o século XX, a evolução do homem para a noosfera (…) uma unificação de todos os sistemas nervosos humanos, todas as almas humanas, por meio da tecnologia”.
Constata, outrossim, que o jesuíta francês “Menciona o rádio, a televisão e os computadores em especial com pormenores consideráveis, e alude à cibernética. (…)”. Esta tecnologia estava criando um “sistema nervoso para a humanidade”, escreveu ele, “uma membrana única, organizada, inteiriça sobre a terra”, “uma estupenda máquina pensante”. (…)”. “A era da civilização terminou”, e a da “civilização unificada está começando”.
Wolfe identifica a noosfera, a membrana inteiriça com a rede inconsútil de McLuhan. Para ele, a civilização unificada não é outra coisa que a aldeia global de pensador canadense. Ainda citando Teilhard, Wolfe constata: “Podemos pensar, escreveuTeilhard, que essas tecnologias são ‘artificiais’ e completamente ‘exteriores aos nossos corpos’, mas na realidade elas são parte da evolução ‘natural, profunda’, do nosso sistema nervoso”. “Podemos pensar que estamos apenas nos divertindo”, ao usá-las, “ou apenas desenvolvendo o nosso comércio, ou apenas propagando idéias. Na realidade, o que estamos fazendo é nada menos do que continuar num plano superior, por outros meios, a obra ininterrupta da evolução biológica”. E Wolfecompleta que, para dizer de outro modo, “O meio é a mensagem”. Não interessa aqui discutir por que McLuhan nunca reconheceu explicitamente a dívida conceitual com Teilhard de Chardin (6). O que importa, nesse momento, é reconhecer os pontos que unem esses dois pensadores importantes para o século XX.
IHU On-Line – O que seria o que o senhor chama de ecologia comunicacional e qual é a sua relação com a midiatização da sociedade atual?
Pedro Gilberto Gomes – A midiatização é a reconfiguração de uma ecologia comunicacional (ou um bios midiático). Torna-se (ousamos dizer, com tudo o que isso implica) um princípio, um modelo e uma atividade de operação de inteligibilidade social. De outra maneira, a midiatização é a chave hermenêutica para a compreensão e interpretação da realidade. Nesse sentido, a sociedade percebe e se percebe a partir do fenômeno da mídia, agora ampliado para além dos dispositivos tecnológicos tradicionais. Por isso, é possível falar da mídia como lócus (7) da compreensão da sociedade.
Aceitar a midiatização como um novo modo de ser no mundo põe-nos numa nova ambiência que, mesmo que tenha fundamento no processo até agora desenvolvido, significa um salto qualitativo no modo de construir sentido social e pessoal. Mesmo que as mediações material e simbólica estejam unidas no processo de midiatização, essa não é um degrau a mais no processo evolutivo, mas um novo qualitativo, síntese na dialética sujeito/objeto. Na sociedade do grande irmão, a tecnologia midiática é uma ambiência que trabalha na construção de sentido, induzindo uma forma de organização social.
Aventamos a hipótese de que a midiatização está para a história da humanidade assim como esteve (e está) a invenção da escrita. Do mesmo modo como não se pode regredir ao período pré-letrado (a não ser se houver um cataclisma universal), também não ser retrocederá a uma era pré-midiatização. Ambas significam um salto no hiper-espaço da evolução humana.
Notas:
(1) As idéias que seguem e embasam a reflexão foram desenvolvidas em: GOMES, Pedro Gilberto. A filosofia e a ética da comunicação no processo de midiatização da sociedade. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2006. Ver, principalmente, o capítulo 6. (Nota do autor)
(2) Herbert Marshall McLuhan foi um filósofo e educador canadense. McLuhan introduz “o impacto sensorial”, “o meio é a mensagem” e “aldeia global” como metáforas para a sociedade contemporânea, ao ponto de se tornarem parte da nossa linguagem do dia-a-dia. Teórico dos meios de comunicação, foi precursor dos estudos midiológicos. Seu foco de interesse não são os efeitos ideológicos dos meios de comunicação sobre as pessoas, mas a interferência deles nas sensações humanas, daí o conceito de “meios de comunicação como extensões do homem” (título de uma de suas obras), ou “prótese técnica”. Em outras palavras, a forma de um meio social tem a ver as novas maneiras de percepção instauradas pelas tecnologias da informação. Os próprios meios são a causa e o motivo das estruturas sociais.
(3) Para uma consulta mais ampla ao pensamento de McLuhan, sugerimos a consulta ao nosso trabalho anterior: GOMES, Pedro Gilberto. Tópicos de Teoria da Comunicação. 2. ed.. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2004, p. 114-121. (Nota do autor)
(4) Pierre Teilhard de Chardin, jesuíta francês, morreu em 1955, nos Estados Unidos, está na base do pensamento deHerbert Marshall McLuhan. Sua obra seminal é O fenômeno humano, publicada em Madrid, pela editora Taurus. (Nota do autor)
(5) WOLFE, Tom. “Introdução”. In: MCLUHAN, Marshall. McLuhnan por McLuhan. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. (Nota do autor)
(6) Extra-oficialmente se especula que, tendo em vista que o jesuíta francês estava proibido de ensinar pelas autoridades eclesiásticas e como McLuhan era católico e professor de uma Universidade Católica, este não quisesse ou não pudesse expor-se publicamente comprometido com idéias proibidas. (Nota do autor)
(7) Giovanni Boccia Artieri trata longamente desse tema, colocando a comunicação como lócus de análise da sociedade (In: ARTIERI, Giovanni Boccia. I media-mondo. Roma: Meltemi, 2004). (Nota do autor)
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