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Imagem, imaginário e (in)visibilidade da Umbanda e das religiões mediúnicas no Brasil – entrevista com Maurício Ribeiro da Silva

01/10/2020
Por João Damasio

Como o corpo, o terreiro e a cidade se relacionam com as imagens? O professor Dr. Maurício Ribeiro da Silva, docente e coordenador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Paulista (UNIP-SP), conversou com João Damasio, doutorando em Comunicação pela Unisinos, sobre os diversos percursos para essa e outras questões ao redor das relações comunicacionais da Umbanda, do Candomblé e das religiões mediúnicas no Brasil.

Ao longo da entrevista, o autor combina sua dupla formação como arquiteto e comunicador à perspectiva de estudos do imaginário para ressaltar a importância da Umbanda nas Ciências Humanas e Sociais no Brasil. Ele problematiza, sobretudo, as questões de visibilidade e invisibilidade e os modos de ocorrência das experiências rituais destas religiosidades na midiatização. Para Maurício, o imaginário da Umbanda aparece, ao mesmo tempo, como potência criativa e como instrumento de poder: no espaço urbano, no jornalismo do início do século XX, nas mídias audiovisuais e nas mídias digitais. Maurício aposta que “a imaginação, caminho para o acesso ao imaginário, possibilita consumirmos as imagens em lugar de sermos consumidos por elas”. De fato, além de ofertar modos de olhar, o professor nos apresenta inúmeras imagens sobre o tema tratado e viabiliza que imaginemos nossas condições de alteridade. A seguir o leitor poderá conferir a primeira parte da entrevista. A versão definitiva será publicada em livro organizado pelo Mídia, Religião e Sociedade.

 

 João Damasio: Professor Maurício, para começar esta entrevista, gostaria de saber um pouco sobre sua trajetória de estudos. Como os universos da arquitetura, da comunicação e das religiosidades dialogam aí? E como isso culmina em seu recente estágio pós-doutoral com o professor Muniz Sodré (UFRJ)?

Maurício Ribeiro da Silva: Quando era estudante de graduação no curso de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos, cursei uma disciplina chamada Estudos de Linguagem. Basicamente era uma aplicação da semiótica peirceana ao campo da arquitetura, design e artes visuais. Acabei me tornando monitor da disciplina e o problema da linguagem acabou sendo, para mim, o fio condutor do curso.

Depois de formado, retornando a São Paulo, fiz alguns cursos de extensão no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP e em seguida parti para o mestrado. No curso descobri outras vertentes da semiótica e percebendo as relações entre a produção de espaço na sociedade e a semiótica da cultura, acabei dedicando minhas pesquisas a compreender os processos comunicacionais a partir do viés da cultura e sua relação com a cidade, com os edifícios e com os objetos.

Com a crescente inserção dos meios tecnológicos produtores de imagem na sociedade e as transformações culturais advindas desta condição, passei a observar o impacto da cultura da imagem na produção de espaço, o qual passava de uma condição funcionalista própria do movimento moderno, para outra associada ao imperativo da visibilidade.

Assim, tanto a pesquisa de mestrado quanto a de doutorado e também as posteriores, já realizadas no Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Comunicação da Universidade Paulista – UNIP, tinham como foco compreender as transformações estruturais e estruturantes promovidas nos ambientes urbanos a partir da inserção de novos aparatos de comunicação, proporcionando uma nova relação com o lugar, condição esta que designei como equizotopia, isto é a vida a partir de um conceito de lugar complexificado, que inclui o aqui e o distante, que desterritorializa o viver e que insere a imagem dos lugares como elemento importante da vida mediatizada, como já indicava Muniz Sodré.

Percebemos alterações na memória dos espaços a partir do uso de aplicativos como o Waze ou o Google Maps que retiraram as percepções referenciais do caminho na mesma medida em que possibilitaram maior mobilidade das pessoas, sobretudo nas grandes cidades. Também observamos que manifestações políticas, como as passeatas de 2013, passaram a ocorrer não somente nos lugares importantes sob o ponto de vista histórico como são a Praça da Sé ou o Vale do Anhangabaú em São Paulo (palcos dos movimento das Diretas Já), mas naqueles que se tornaram ícones midiáticos como é a Ponte Otávio Frias Filho, mais conhecida como Ponte Estaiada, sempre presente nos telejornais da Rede Globo. Esta transição de lugares, mais do que uma ocorrência fortuita, indica a preponderância da visibilidade midiática no fazer político e demonstra uma das dimensões da midiatização do urbano.

No estudo da obra de Muniz, encontrei um livro menos conhecido, mas profundamente instigante: O Terreiro e a Cidade, o qual trazia à tona uma dimensão oposta àquela que vinha trabalhando, indicando a presença na cidade de outras construções socioculturais especializadas, perceptíveis, mas não visíveis. Conforme dizia ele, a cidade tal qual víamos a partir da perspectiva europeia que constitui hegemonicamente a cultura brasileira, tinha para com relação às espacialidades de origem africana e indígena um comportamento ilusório, fantasmático, que sabe da existência da africanidade, mas não a reconhece. Segundo Muniz, um “trompe l’oeil” ou “engana-olhos” em tradução literal.

Passei a reconhecer na cidade a presença da cultura das encruzilhadas, do paisagismo urbano que proporciona a ocorrência de certos tipos de plantas utilizadas pela cultura da umbanda e do candomblé em seus banhos, plantadas em espaços públicos nas regiões da cidade em que há maior concentração de terreiro e também de rituais umbandistas praticados generalizadamente por toda a sociedade brasileira sem que percebam a origem e outros indícios da potência da pesquisa sobre o que não é invisível, mas é invisibilizado.

Diante deste quadro, após um relativamente longo tempo de preparo, buscando compreender os estado-da-arte das pesquisas relacionadas à comunicação e religiosidade, partimos para o projeto de pesquisa que estamos em vias de finalizar na ECO-UFRJ sob a supervisão de Muniz Sodré. Os resultados se mostraram instigantes, inclusive com relação à invisibilidade digital da Umbanda, repetindo o padrão identificado no espaço urbano.

João Damasio: Sua tese de doutorado (Silva, 2013) remete às questões do imaginário. É também por essa via que você chega à Umbanda como objeto de pesquisa?

Maurício Ribeiro da Silva: Sim, certamente. Como dito anteriormente, a leitura do livro O Terreiro e a Cidade, de Muniz Sodré, chamou nossa atenção para os processos de consumo, seu modus operandi sobre as imagens e as operações que resultam no rebaixamento de nossa capacidade imaginativa sobre elas.

Passamos a perceber, a partir da aceitação do samba por exemplo, para que possam ser apresentadas como pertinentes ao imaginário brasileiro, as práticas religiosas de origem não europeia precisam ser despotencializadas, isto é, perder seu vigor mágico, relacionado ao imaginário.

Isto não significa que o samba seja algo menor sob o ponto de vista cultural, nem que sua importância para a formação da brasilidade seja pequena, mas que devemos atentar para o fato de que via de regra, nas culturas a religião ocupa papel central e, no caso africano, a música e a dança são elementos indissociáveis do rito. O samba em sua origem consubstancia um processo de profanação (isto é, torna-se profano) na medida em que os ritmos e o requebrar do corpo passam a ser algo em si, perdendo o vínculo com a religião e, portanto, seu imaginário. Este rebaixamento é traço primordial da aceitação, o qual passa a se valer de outros imaginários (alegria, felicidade), tornando invisibilizado aquele que o origina e o alimenta.

O mesmo processo ocorreu com a capoeira, forçada a deixar de ser uma arte marcial original para se transformar em dança. Em suma, para se tornar brasileiro, o traço de origem africana ou indígena forçosamente perde sua potência, é rebaixado ou invisibilizado. Temos, então, que se o samba é sinônimo de brasilidade, a religião que o origina e do qual faz parte não o é, pois precisa ser designada a partir de um prefixo: afro.

Esta condição impõe perceber que há uma narrativa perversa, ajustada à ideia de racismo estrutural, uma vez que não nos consta que o cristianismo seja uma religião brasileira e nem mesmo europeia, visto que tem sua origem na Judéia. Não consta que o cristianismo, em qualquer de suas vertentes que aqui chegaram a partir da Europa, ou mesmo o espiritismo que é uma espécie de cristianismo mediúnico, sejam designados como religiões euro-brasileiras, a despeito da notória diferenciação entre as práticas populares destas religiões no Brasil em comparação com as matrizes europeias. Assim, a designação de Umbanda e Candomblé como religiões afro-brasileiras ou de matriz africana indica que são assumidas, mas com reticências. A valorização do que é africano ocorre, portanto, quando há o desvínculo entre a prática e sua origem, rompendo o laço entre a ação a potência imaginária que a nutre.

É esta relação entre imagem, sua visibilidade/invisibilidade e o imaginário a ela associado que chamou a atenção no caso da Umbanda, levando-nos a trazê-la para o centro da pesquisa. De todo modo, observamos que mesmo se tratando de um objeto imenso e instigante, o foco epistemológico sobre a imagem e o imaginário se mantém desde pesquisas anteriores.

João Damasio: Como podemos entender as relações do corpo e da mídia para pensar as religiões em geral e, especificamente, as religiões mediúnicas?

Maurício Ribeiro da Silva: Para além das observações de fenômenos midiáticos em si, observando a realização de programas realizados por grupos neopentecostais ou católicos no rádio, na televisão e mais recentemente na internet, associados ao proselitismo e/ou comercialização que sustenta financeiramente muitas igrejas, penso que o fenômeno religioso visto sob a perspectiva comunicacional tem perspectivas interessantes e importantes, que auxiliam na compreensão dos processos culturais relacionados à sociedade contemporânea.

De saída é preciso reconhecer que a religião é um fenômeno coletivo, a despeito do caráter individual que está associado ao sujeito que a pratica. Assim, quando um padre fala, por exemplo, não podemos observar o fenômeno somente a partir da lógica de emissão e recepção, realizar a análise do discurso, estabelecer estudos de recepção e outras estratégias próprias da área de comunicação.

Por mais que sejam pertinentes estes estudos, do cruzamento entre religião e comunicação emergem algumas perspectivas que explicam os processos de expansão e retração das religiões a partir de sua estrutura midiática. Com isso queremos dizer que podemos dividir as principais religiões praticadas no país, por exemplo, analisando a estruturação dos rituais a partir de dois modelos comunicacionais bastante recorrentes na atualidade: a comunicação de massa e a comunicação de rede.

Rituais como o católico e o neopentecostal que atuam sob a lógica do proselitismo, configuram-se essencialmente a partir da “economia do sinal”, como dizia o teórico da mídia Harry Pross. Para valorizar a emissão, buscava-se ampliar o número de receptores na passagem da capela para a igreja e da igreja para a catedral reduzindo o esforço relativo do emissor quando comparado à estratégia anterior.

Do mesmo modo, a alteração do tipo de mídia – de primária para secundária e de secundária para terciária – amplia o alcance do sinal. Assim, se o próprio Cristo subiu a montanha para de uma só vez falar para mais pessoas, Lutero valeu-se da escrita para que suas críticas ao Papa chegassem em outras regiões e tempos, sem a necessidade de seu deslocamento. Na contemporaneidade, o rádio e a TV ampliaram o sinal de modo exponencial, atingindo públicos antes inimagináveis.

A contemporaneidade, porém, possibilitou o acesso do receptor distante não somente à mensagem enviada, mas conferiu a possibilidade (discutível, é fato) da telepresença ou presença mediada. A seu modo e conforme querem crer os adeptos, a vivência do teleculto proporciona a experiência do ritual, no conforto do lar, demonstrando cabalmente a mediatização da vida, conforme aponta Muniz Sodré.

Assim, a constituição da mídia terciária passa a possibilitar não somente a ampliação do sinal do emissor, mas a ampliação do próprio ambiente da igreja, ou seja, não se trata de ampliar a mensagem, mas o espaço no qual ela é proferida, oferecendo ao receptor em algum nível a experiência do pertencimento.

Ainda tomando como referência o pensamento de Harry Pross, no processo de economia do sinal ocorre a transferência do ônus do emissor para o receptor. Se na antiguidade era necessário que o pregador se deslocasse para que sua mensagem chegasse aos gentios, na contemporaneidade midiática é do receptor a responsabilidade e o esforço de adquirir os aparatos necessários à sua inserção na comunidade, sendo o mais visível o televisor. Contudo, com ele sequencia-se a criação de outras necessidades de consumo: o CD, a edição correta da Bíblia, o terço e outros tantos produtos e experiências (o Batismo no Rio Jordão, a visita a Jerusalém…). Tais consumos tendem a ampliar a experiência da teleparticipação, levando para outros momentos da vida a experiência limitada no tempo de transmissão do culto.

Temos, portanto, que este estágio (a midiatização associada ao consumo) talvez represente o ápice de um ritual que em essência já se mostrava adequado à uma estratégia de massificação, visto que sempre é conduzido na escala de um emissor para muitos receptores.

As religiões mediúnicas, por sua vez, não têm – a princípio – a mesma possibilidade de ofertar a telepresença ritual, uma vez que em essência conduzem a experiências rituais únicas, não massificáveis. Seja a carta psicografada, a conversa com o Guia da Umbanda ou o resultado dos búzios diante do Babalorixá, o resultado desta experiência não é passível de condição de emissão única destinada a um sem número de fiéis, porque configura a mensagem necessária e destinada a cada indivíduo. O ritual que circunda tais comunicações, por mais exótico que venha a parecer quando apresentado na telinha, nada mais é do que a constituição do ambiente propício para que as mensagens sejam recebidas. Assim, compreendemos que a experiência religiosa nestes casos não se dá pela via da comunicação de massas, mas a partir da comunicação direta.

Por outro lado, como qualquer religião, as religiões mediúnicas possibilitam algum nível de massificação quando observados o domínio doutrinário, sendo este o processo que proporciona associação à lógica do consumo. Temos observado que grupos mais estruturados como os espíritas, organizados na centralidade da Federação Espírita Brasileira, apresentam canais de televisão destinados à apresentação de conteúdos do espiritismo. Já umbandistas e candomblecistas, para não falar de outros grupos de menor apresentação demográfica, tendem a utilizar-se espaços menos custosos como rádios, plataformas streaming ou agregadores de podcasts para apresentar suas doutrinas.

No caso da Umbanda, que acompanhamos mais de perto, observamos que estes canais acabam por serem estruturados a partir da lógica do seguidor/digital influencer, o que acaba se constituindo como um negócio que se funda em estratégias de patrocínio e vendas de produtos. Aproveitando-se do fato da Umbanda não ser uma religião formalmente estruturada e hierarquizada (não possui um único líder supremo ou uma Federação que estabelece os limites das práticas), esta condição midiática tem proporcionado um rápido fenômeno de segmentação, no qual já percebemos a criação de “marcas” que passam a associar seguidores de uma determinada doutrina (ou, se quiser, determinado médium), como é o caso da Umbanda “Sagrada”, praticada por seguidores do médium Rubens Saraceni que iniciou esta ramificação a partir de uma profícua produção de livros e que com seu falecimento tem em alguns discípulos a continuidade do trabalho na forma de cursos e venda de novas obras por eles escritas.

Por fim, observamos que a comunicação em rede ofertada pelas plataformas, tem possibilitado a exacerbação do consumo que caminha no sentido de possibilitar, pelo menos em parte, algumas experiências do terreiro. Um exemplo é a oferta de kits nos quais o adepto da Umbanda pode receber mensalmente, em sua casa, os insumos (velas, bebidas etc.) necessários à realização da “firmeza” daquele mês. A “firmeza” é uma espécie de ritual que se destina ao alinhamento da vibração espiritual do adepto com alguma frequência espiritual, alguma regência associada ao domínio de um Orixá. Assim, em lugar de ir ao terreiro e receber a orientação de um Guia, o indivíduo recebe em casa seu kit, com todas as instruções necessárias ao cumprimento de sua obrigação.

Por fim, percebemos também que estas religiões diferem também no meio utilizado para que os fiéis recebam suas mensagens vindas diretamente da espiritualidade. Na Umbanda a mensagem é eminentemente direta e ocorre em mídia primária, visto que em condições ideais o médium não apresenta consciência de sua fala. Como o próprio nome diz, é o meio pelo qual o Espírito fala àquele que recebe a orientação. Já no Espiritismo e no Candomblé (falamos genericamente), as mensagens tendem a serem recebidas por meio secundário, seja a carta psicografada, seja o opon (a esteira na qual são jogados os búzios).

João Damasio: Recentemente, você entrou com um texto na nova edição de um livro clássico para a história da Umbanda, “O Espiritismo, a magia e as Sete Linhas de Umbanda” (Silva, 2019a). Como o estudo dos jornais do século XX contribuem para a compreensão desse imaginário? Há continuidades ou rupturas nas mídias audiovisuais e digitais?

Maurício Ribeiro da Silva: Este livro, de fato, é um marco para a Umbanda, uma vez que é o primeiro material inteiramente dedicado a elucidar o que é esta prática, entendida na época (1933) como uma variante do Espiritismo. Na verdade, o livro é resultado de uma sequência de matérias publicadas no jornal Diário de Notícias do Rio de Janeiro, o que já traz de saída a relação entre jornalismo e Umbanda, sobretudo em seus primórdios.

O olhar para esta obra e a produção jornalística do século XIX e XX, lança luz sobre um período obscuro para a história da Umbanda e diante deste material colocamos em xeque as teorias que apontam que o início desta prática se deu a partir do Candomblé em fusão com o Espiritismo, a partir de espíritas descontentes.

No ambiente positivista que estava imersa a corte de Dom Pedro II, os fenômenos do espiritismo eram bastante presentes nos salões da alta sociedade e nos jornais, que produziam “inquéritos” ou “dossiês” acerca dos fenômenos espirituais em uma atmosfera alinhada com o princípio científico da época. Estas reportagens eram semanal ou quinzenalmente publicadas, muitas delas em primeira página (o que indica o potencial de venda deste tipo de abordagem) para depois serem agrupadas em forma de livro e vendidas como um subproduto do jornalismo. O mais famoso destes trabalhos, que chegou até nós como um importante documento etnográfico acerca das religiões praticadas na então capital federal no início do século, foi a obra de João do Rio: As Religiões no Rio.

Este modus operandi é bastante significativo. Via de regra, as matérias eram publicadas nos mais importantes jornais da época como A Noite (que tinha como sócio Irineu Marinho e vendeu sua parte em 1924 para fundar o Jornal O Globo) e Jornal do Brasil e que destacavam jornalistas renomados para sua condução. João do Rio, no caso, era membro da Academia Brasileira de Letras e o próprio Leal de Souza, responsável pela notícia do assassinato de Euclides da Cunha em 1909, era poeta parnasiano e membro do círculo de poetas do qual fazia parte Olavo Bilac.

Assim, percebemos que se tratava de um importante produto editorial, capaz de impulsionar a venda dos jornais e ainda movimentar o mercado na forma de livro. Trata-se da mesma estratégia para a publicação do melhor de nossa literatura da época, como podemos perceber a partir de Machado de Assis, José de Alencar e outros.

A observação destes documentos indica que não há menção sobre a Umbanda no inquérito de João do Rio, produzido entre 1903 e 1904 ou em publicações anteriores. Leal de Souza, por sua vez, foi o primeiro a registrar em 1924 a existência da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, conduzida pelo médium Zélio Fernandino de Moraes em São Gonçalo, município vizinho a Niterói, no inquérito publicado pelo jornal A Noite (tudo indica que tenha sido a pedido de Irineu Marinho) denominado No Mundo dos Espíritos, que buscava “atualizar a situação das religiões mediúnicas na Guanabara”. Um nítido esforço de secundar a obra de João do Rio, vinte anos depois.

A partir deste registro, estudos posteriores publicados a partir da década de 1970 como os elaborados por Renato Ortiz ou Diana Brown, indicaram a década de 1920 como provável origem da Umbanda. Por sua vez, encontramos nos jornais matéria policial e anúncios classificados a partir de 1913, o que não só indica a existência da Umbanda uma década antes do que indicavam estes e outros autores, mas também possibilita consolidar o início no intervalo entre 1904 (trabalho de João do Rio) e 1913 (primeira matéria que trata explicitamente da Umbanda), reforçando a fala de Zélio de Moraes e da maioria dos umbandistas na atualidade de que o início do culto se deu em 1908.

Além disso, a leitura de Leal de Souza – um jornalista espírita que passou a participar da Umbanda depois de seu encontro com Zélio de Moraes em 1924 chegando a ser dirigente da Tenda Espírita Nossa Senhora da Conceição, tida como a segunda casa de Umbanda, fundada em 1918 a partir da Tenda da Piedade – possibilita compreender que na década de 1920 os espíritas não viam a Umbanda como religião de matriz africana, passando a ocorrer este afastamento somente na década posterior, 1930. Observamos, a partir do acompanhamento das publicações jornalísticas, de variedades e posteriormente dos programas de televisão que a Umbanda não nasce como um “embranquecimento” (como dizia Renato Ortiz) do Candomblé, mas resulta em um “empretecimento” do Espiritismo. Em um primeiro momento se tratava de uma narrativa que buscava a depreciação de um culto que crescia rapidamente e que não tinha pretensões elitistas, mas que com o tempo passa a receber adeptos do Candomblé e outras religiões de origem africana (Omolocô, Macumba etc.), recebendo suas influências e tornando-se o que vemos hoje.

Não podemos falar de rupturas no trato da Umbanda nos meios de comunicação, mas é observável a construção de estratégias de estigmatização do culto a partir da valorização dos aspectos associados ao imaginário do demônio, perspectiva própria do cristianismo, que com o tempo vai se consolidando e se naturalizando no imaginário social de modo a compor elementos de fundo presentes não só em telejornais, mas também em programas de entretenimento (sobretudo humorísticos), documentários, revistas, cinema etc.

João DamasioEm seu artigo na Revista Líbero (Silva, 2019b), a “midiatização do ritual” está relacionada à invisibilidade da Umbanda na cultura brasileira. Como o imaginário da Umbanda dialoga com os símbolos da brasilidade?

Maurício Ribeiro da Silva: É notório que os comportamentos e rituais que compõem o que chamamos de brasilidade trazem traços inequívocos das culturas africanas trazidas à força durante o período da escravidão. É comum a valorização do futebol, do samba, da capoeira, da feijoada, do acarajé, como também da mandinga, das superstições e outras contribuições como elementos advindos dos povos escravizados.

A despeito disso, chama a atenção alguns fatores. Quando tratamos de povos europeus somos específicos em diferenciar, por exemplo, portugueses e espanhóis. Observamos suas diferenças a partir do conhecimento que temos de seus territórios próprios, línguas diferenciadas, culinária etc. O leitão, a couve e o bacalhau de um lado, a paella de outro. Nesta perspectiva não percebemos que ambos têm sua fundação na ocupação romana da Península Ibérica, secundada por séculos de dominação moura. Não observamos que tiveram suas coroas unidas por um bom tempo (tempo em que o Brasil fez parte do mundo espanhol). Não destacamos que nossas línguas são muito próximas a ponto de conseguirmos dialogar uns com os outros com esforço relativamente pequeno.

Por sua vez, observamos que os diferentes povos trazidos da África – como iorubás e bantos, por exemplo – com línguas, costumes, culinária e religiões diferentes, inclusive sendo de regiões distantes entre si, são tratados genericamente como africanos. O mesmo também ocorre com nossos índios. Atualmente, mesmo após tanto confronto, ainda restam mais de 200 línguas faladas no Brasil, mesmo assim os tratamos todos como índios, como se fossem uniformes, idênticos. Esta condição denota que o polo europeu em nossa cultura fala mais alto e que as identidades específicas se apagam a partir de um olhar hegemônico que não olha para os outros como o que são, distinguindo-os entre si. Este olhar etnocêntrico somente consegue distingui-los de si mesmo.

Para a Umbanda esta condição é fundante, visto que a própria religião se constitui a partir da fusão do imaginário do índio (manifesto nas entidades denominadas Caboclos) e do africano (na manifestação dos Pretos-velhos). O que se observa é que no transcorrer do processo histórico, a figura do Caboclo é mais recorrente no período inicial até a década de 1950, ou seja, no período que figurava como parte do Espiritismo ou enquanto sofria o processo de separação (os detratores afirmavam justamente a relação da religião com o africanismo). A partir da década de 1960 o Preto-velho é mais acionado, justamente quando a Umbanda passa a ser definitivamente associada à matriz africana. Mais recentemente, já no século XXI, as imagens dos Orixás, sobretudo Iemanjá, Ogum e Exu (sendo este cada vez mais presente nos últimos anos) passam a progressivamente servir como imagens ilustrativas.

Esta trajetória revela um percurso semiótico que desvela que a associação com o imaginário africano não se dá pela caracterização da religião em si, mas por conta da construção de narrativas que se apoiam na desvalorização das contribuições que se mantém perceptíveis como africanas em nossa sociedade. A vinculação entre Umbanda e o imaginário vindo da África, observado o trajeto histórico, nos parece ser mais uma tentativa de refrear seu crescimento, associando-a à ideia de que as religiões pagãs, do que essencialmente caracterizá-la.

Na prática, mesmo sabendo que há muita variação nas correntes umbandistas, podemos dizer que os principais grupos entendem a relação com o Espiritismo não só como histórica, mas como elemento fundante da Umbanda. Nesta perspectiva, a despeito do sincretismo na denominação de santos católicos com nomes de Orixás africanos, podemos compreender que se trata de uma religião cristã na medida em que o Evangelho (segundo o Espiritismo) constitui seu principal livro doutrinário.

Além do fenômeno da repulsa, apresentado anteriormente, a sociedade também atua no sentido da assimilação. Assim como já apresentamos com relação ao samba e a capoeira, as práticas umbandistas são assimiladas pela cultura popular e disseminadas pelo país como um todo, independentemente de cor, condição social ou credo.

Um dos melhores exemplos é o ritual de ano novo. O uso da roupa branca, presente nas praias, nos salões, nos restaurantes, nas casas e na televisão, tem origem nos rituais umbandistas que tomavam praia de Copacabana na década de 1970. Outras práticas, tidas como crendices porque perderam seu fundamento (isto é, profanaram-se) como o pular sete ondas também tem origem nos mesmos rituais.

Como dissemos anteriormente, este tipo de operação que coloca de lado as crenças associadas à capacidade de intervenção destas práticas na realidade, mostra que o preço da assimilação e consequente ascensão para o rol da brasilidade, impõe perdas significativas ao sentido original. Caso isto não ocorra, a aceitação é parcial e fica sob a designação afro-brasileira, isto é, é brasileira, mas não na totalidade.

João Damasio: Você participa com um capítulo no livro “Umbanda, cultura e comunicação: olhares e encruzilhadas” (Silva, 2019c), junto de diversos autores que pesquisam sobre essa religiosidade atualmente. Como você avalia o campo de estudos sobre a Umbanda e as religiões mediúnicas em nossa área?

Maurício Ribeiro da Silva: A Umbanda é um fenômeno de grande potencialidade e importância para as Ciências Humanas e Sociais no Brasil, creio. Percebemos que foi um objeto que esteve na mira dos pesquisadores sobretudo a partir da década de 1970, quando ela atingiu o ápice de visibilidade na cultura, como podemos perceber com Clara Nunes, por exemplo. Observamos algumas gerações de pesquisadores que foram abordando a Umbanda em variadas perspectivas (cultural ou política, por exemplo). Contudo, a partir da década de 1990, com a ascensão das igrejas neopentecostais, muitos pesquisadores mudaram seus objetos de pesquisa, observando o novo fenômeno que se descortinava. Neste cenário, a Umbanda, apesar de configurar um ótimo objeto para compreender as relações sociais e culturais no Brasil, tendeu a ser esquecida.

A despeito de modismos, ela ainda permanece um objeto instigante, sobretudo quando compreendemos a dimensão de sua presença invisível, que não reflete a condição demográfica dos praticantes, ínfima quando comparada a grupos como os católicos ou os evangélicos.

Nossa pesquisa já identificou, por exemplo, que o verbete <umbanda> supera o volume de buscas de verbetes como <Papa Francisco> ou <Igreja Universal do Reino de Deus> em ferramentas como o Google Trends. Mais do que isso, o verbete <Exu> supera o volume de buscas de <Nossa Senhora Aparecida>, a padroeira do Brasil. Estes dados serão em breve publicados na forma de artigo, mas denotam o enorme potencial de pesquisa e o imenso desconhecimento que temos da Umbanda e a contribuição da área de comunicação, diante da importância crescente das redes digitais, plataformas etc.

João Damasio: Para finalizar, gostaria que você comentasse a respeito dos projetos sob sua orientação ou nas redes de pesquisas com quem tem trabalhado.

Maurício Ribeiro da Silva: Nosso grupo tem buscado orientar as investigações a partir da perspectiva de uma pesquisa voltada para o Brasil, capaz de desnudar processos que historicamente atuam na construção de hegemonias que a seu modo sustentam a persistência de nossas mazelas. Assim, tendemos a olhar para o imaginário tanto na perspectiva de sua potência criativa quanto na de seu uso como instrumento de sujeição, rebaixado para servir como imagem na forma de ideologia.

Partindo desta perspectiva, estão em curso pesquisas que buscam identificar e/ou compreender o imaginário associado à Umbanda em primeiro lugar e a todo o espectro afro-brasileiro de modo mais amplo, sobretudo aquele que atua no sentido do rebaixamento da prática ou de seus praticantes.

Como este imaginário é bastante ramificado, os objetos de pesquisa se apresentam muito variados. Temos observado que o mesmo imaginário nutre os argumentos contrários à adoção da disciplina História da África no sistema de ensino brasileiro e os processos jurídicos que levam, por exemplo, a uma mãe perder a guarda da filha por levá-la ao Candomblé.

Em perspectiva histórica, observamos que este mesmo imaginário que estigmatizou os escravos índios nos séculos XVI e XVII e africanos nos séculos XVII, XVIII e XIX, foi utilizado para detratar nos jornais os italianos que vieram para São Paulo na segunda metade do século XIX e permaneceram na estigmatização de nordestinos que vieram a São Paulo a partir da década de 1940 ou refugiados que procuraram o Brasil já neste século XXI. O mesmo processo também está estampado na produção literária desde o período colonial até hoje, em livros utilizados como referência na educação básica. Outra pesquisa que corre neste contexto tem conseguido identificar que o mesmo processo ocorre com relação à Umbanda nos países do Prata (Argentina e Uruguai), denotando que tratamos de algo que não se restringe ao Brasil.

Outro fenômeno relevante associado à mesma bacia semântica, é o processo de detratação de lideranças indígenas que se tornam expoentes dos pleitos de seus povos. O processo de detratação, assim como nos casos de linchamento virtual, também possui raízes no imaginário associado a práticas “inspiradas” pelo demônio, como já dissemos anteriormente.

Em outro caminho, temos observado os processos de midiatização da religião conforme já apontamos e também o uso de ferramentas de compartilhamento (como é o caso do AirBNB) para a constituição de experiências de vivência do grotesco, observando similaridades entre os zoológicos humanos construídos nos Estados Unidos e na Europa e programas como o FavelaTur, no Rio de Janeiro.

Por trás de todos estes fenômenos, temos notado a estigmatização fundada em um posicionamento etnocêntrico, que se mostra incapaz de compreender o outro como ele efetivamente é.

REFERÊNCIAS

SILVA, Maurício Ribeiro. Na órbita do imaginário: comunicação, imagem e os espaços da vida. São José do Rio Preto, SP: Bluecom Comunicação; São Paulo: UNIP, 2012. Disponível em: https://bit.ly/2EmkXDL.

SILVA, Maurício Ribeiro. O eclipse do imaginário: imaginário instrumental nas imagens do Candomblé e da Umbanda. In: Anais do XXVII Encontro Anual da Compós, Belo Horizonte, MG, 2018.

SILVA, Maurício Ribeiro. O Espiritismo, a magia e as Sete Linhas de Umbanda: a religião e os “inquéritos” no jornalismo carioca da virada do século XX. In: SOUZA, Leal. O espiritismo, a magia e as sete linhas de umbanda. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundamentos de Axé, 2019a, p. 295-304.

SILVA, Maurício Ribeiro. Trompe-l’oiel: (in)visibilidade da Umbanda na cultura brasileira. Líbero, Ano 22, n. 44, jul./dez. 2019b.

SILVA, Maurício Ribeiro. Umbanda e os meios de comunicação: documentos para a compreensão da história e a atualidade desta religião brasileira. In: CAMARGO, Hertz Weldel de (org.). Umbanda, cultura e comunicação: olhares e encruzilhadas. Curitiba: Syntagma, 2019c, p. 70-102.

SOUZA, Leal. O espiritismo, a magia e as sete linhas de umbanda. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundamentos de Axé, 2019.

PARA CITAR ESTA ENTREVISTA

SILVA, Maurício Ribeiro da. : Imagem, imaginário e (in)visibilidade da Umbanda e das religiões mediúnicas no Brasil – entrevista com Maurício Ribeiro da Silva. [01/10/2020]. Mídia, Religião e Sociedade (site). Entrevista concedida a João Damasio. Disponível em: .  Acesso: (data)

SOBRE O ENTREVISTADO

Doutor em comunicação e semiótica (PUC-SP) e arquiteto e urbanista (Escola de Engenharia de São Carlos – USP). Professor Titular e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Paulista (UNIP-SP), membro do Grupo de Pesquisas em Mídia e Estudos do Imaginário e do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia. Desenvolve pesquisas em Comunicação envolvendo questões relacionadas à Teoria da Mídia e Teoria da Imagem a partir da perspectiva do imaginário. Pós-doutorando na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a supervisão do Professor Doutor Muniz Sodré. Presidente da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação – Compós. Foi Pró-Reitor Acadêmico (Centro Universitário Módulo – Caraguatatuba/SP), Diretor de Planejamento de Ensino (Centro Universitário de Maringá – Maringá/PR) e Assessor Especial da Pró-Reitoria de Extensão (Universidade Cruzeiro do Sul/SP). É autor dos livros “Na Órbita do Imaginário: comunicação, imagem e os espaços da vida” (Bluecom, 2012), e coautor das obras “Mobilidade, Espacialidade, Alteridades” (EDUFBA, 2018), CISC 20 Anos: comunicação, cultura e mídia (Bluecom, 2012) e O Espírito do Nosso Tempo (Annablume, 2004).

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A entrevista integral desta entrevista será publicada em livro organizado pelo Mídia, Religião e Sociedade. Acompanhe as atualizações nossa página no facebook e não perca as novidades.

SOBRE O ENTREVISTADOR

Foto de João Damasio da Silva NetoJoão Damasio é doutorando em Ciências da Comunicação (Unisinos), mestre em Comunicação (UFG) e graduado em jornalismo (Faculdade Araguaia), além de técnico em Sistemas de Informação e Interpretação Teatral. Bolsista Capes Proex, atualmente desenvolve a pesquisa de tese sobre imaginário e midiatização do espiritismo. Integra o Laboratório de Circulação, Imagem e Midiatização (Lacim), o Grupo de Pesquisa em Midiatização e Processos Sociais (Unisinos) e o Grupo de Pesquisa Interdisciplinar sobre o Espiritualismo Brasileiro e Internacional (Interespírito, UFG e PUC-GO).

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